O Que Buddha, o Novo Testamento
e Helena Blavatsky Dizem a Respeito
Carlos Cardoso Aveline
Bom senso é hoje uma virtude relativamente rara. A todo momento encontramos pessoas entusiasmadas e iludidas com poderes psíquicos, clarividência, canalização e todo tipo de manipulação desastrada de energias sutis para fins pessoais.
E também é possível encontrar pessoas que buscam ardentemente a vivência da ética, que estão interessadas em aprender a arte de viver corretamente, e buscam com inteligência plantar o bem, antes de colher o bem.
Diz a tradição que, muitos milhares de anos atrás, o desgraçado final da civilização de Atlântida esteve associado, precisamente, ao uso egoísta e irresponsável de poderes psíquicos. Estudar a história do movimento teosófico traz grandes lições práticas, e vale a pena citar um exemplo desse princípio geral.
Tão logo H. P. Blavatsky morreu, Annie Besant voltou-se contra os ensinamentos originais e deixou de lado a linha de ação de H.P.B. A partir de então, não faltaram desastres éticos. Ao examinar os fatos históricos, o estudante vê que os absurdos e escândalos provocados na primeira metade do século vinte por Annie Besant e Charles Leadbeater estão diretamente associados ao uso e abuso da falsa clarividência.
Por outro lado, no seu livro “Ísis Sem Véu”, H. P. Blavatsky ensina o caminho da renúncia e da simplicidade. Ela conta que certo dia o rei Prasenagit – amigo e protetor de Buddha – sugeriu ao Mestre que fizesse milagres, isto é, que usasse seus “poderes psíquicos” ou siddhis.
Buddha respondeu:
“Grande Rei, eu não ensino a lei para meus alunos dizendo a eles: ‘vão, vocês, santos, e diante dos olhos dos brâmanes e chefes de família realizem, através dos seus poderes sobrenaturais, milagres maiores do que qualquer homem é capaz de realizar’. Eu digo a eles, quando lhes ensino a lei: ‘Vivam, vocês, santos, ocultando suas boas obras e mostrando os seus defeitos’.” [1]
Em 1895, apenas quatro anos depois da morte de H.P.B., William Q. Judge pareceu referir-se a essa mesma passagem de “Ísis Sem Véu” quando antecipou os perigos que deveriam ser enfrentados e os erros que seriam cometidos pelo movimento teosófico.
Judge escreveu:
“Nós já entramos no obscuro começo de uma nova era. Esta é a era do ocultismo ocidental, e a era de um enfoque e uma exposição especiais e definidos de teorias até aqui consideradas em termos gerais. Temos de fazer como Buddha dizia a seus discípulos: pregar, promulgar, expor, ilustrar, e deixar claras em detalhes todas as coisas grandes que nós aprendemos. Esse é o nosso trabalho, e não a produção de coisas surpreendentes sobre clarividência e outras questões astrais, nem o ofuscamento da visão dos cientistas através de descobertas impossíveis para eles mas fáceis para o ocultista. O plano dos Mestres não se alterou. O plano é tornar o mundo em geral um pouco melhor, preparar o solo para o crescimento dos poderes da alma, que são perigosos quando surgem em nosso solo atualmente egoísta. Não é a Loja Negra que tenta frear o desenvolvimento psíquico; é a Loja Branca. A Loja Negra gostaria muito de ter todos os poderes psíquicos plenamente desenvolvidos agora, porque, através das pessoas maldosas, mesquinhas, hipócritas e interessadas em dinheiro, tais poderes arruinariam a raça humana em pouco tempo. Esta ideia pode parecer estranha, mas para aqueles que acreditariam em minha palavra sem comprovação, eu diria que isto é o que diz o Mestre.” [2]
Judge não está exagerando. É interessante lembrar o que o Novo Testamento ensina em sua narrativa simbólica sobre as tentações de Jesus no deserto. Em Mateus, 4: 3, o “tentador” aproxima-se de Jesus e sugere que ele faça algo que é proibido a todo verdadeiro Peregrino: usar poderes psíquicos com o objetivo de obter bem-estar para si mesmo.
Diz o “tentador” a Jesus, o Iniciado:
“Se és filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães.”
Em sua resposta, Jesus ensina que, para um verdadeiro aprendiz, não há nada mais importante que a voz da Consciência presente em seu próprio interior:
“Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.”
A lição é clara: o uso de “poderes” para fins pessoais é fonte de grave ilusão e sofrimento.
A vida é aprendizagem. Tanto os movimentos esotéricos, coletivamente, como os aprendizes da sabedoria universal, individualmente, devem aprender com os erros do passado para não repeti-los.
No século 21, é possível libertar-nos das estruturas burocráticas e ritualistas de poder construídas com base em tais erros e abusos. Cabe a cada um seguir o caminho da motivação altruísta, com independência e com responsabilidade própria. Esse é o caminho da verdadeira felicidade interior, o caminho pelo qual se obtém “o tesouro que está nos céus”. O resto, diz a tradição, “nos será dado por acréscimo”. Mas não nos será dado no momento ou da forma que podemos esperar. Daí a importância de não pensar nos frutos pessoais das nossas boas ações.
A justiça descerá sobre nós como o orvalho da manhã, quando o bom carma estiver maduro. Ninguém pode apressar ou retardar o nascimento de um novo dia.
O peregrino que possui discernimento trabalha desde as primeiras horas da madrugada, sabendo com certeza que o novo dia virá para iluminar e recompensar, no momento certo, as suas verdadeiras intenções e também os seus atos todos.
NOTAS:
[1] “Isis Unveiled”, H. P. Blavatsky, Theosophical University Press, Pasadena, California, 1988, edição em dois volumes, ver volume I, p. 600. Na edição brasileira de “Ísis Sem Véu” (Ed. Pensamento), a passagem está na p. 272 do volume II.
[2] “Theosophical Articles”, William Q. Judge, Theosophy Co., Los Angeles, 1980, edição em dois volumes, ver artigo “The Closing Cycle”, pp. 154-155, volume II.
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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
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