Para Olhar o Que é Transitório do
Ponto de Vista do Que é Permanente
Carlos Cardoso Aveline
Todo contato real com o Oceano da Teosofia inclui a necessidade
de enfrentar a zona de rebentação e as suas “ondas probatórias”
de enfrentar a zona de rebentação e as suas “ondas probatórias”
Todo conhecimento, novo ou velho, implica uma série de testes. Com frequência os testes são surpreendentes, porque não têm hora marcada para ocorrer, nem podemos prever a forma que assumirão. Só sabemos que virão, e que será preciso passar vitoriosamente por eles para consolidar nosso aprendizado e nosso saber.
Se alguém dirige um carro, a qualquer momento pode ocorrer o teste trazido por um engarrafamento de trânsito, uma estrada perigosa ou outro carro dirigido por motorista imprudente. Não importa se um cidadão é médico, dentista, cobrador de ônibus ou agricultor. Em todas as profissões, e onde quer que haja uma forma qualquer de conhecimento, haverá testes na aplicação daquilo que sabemos. O conhecimento das coisas espirituais, naturalmente, não é uma exceção a esta regra. Por isso falamos de “provações” no processo do autoconhecimento.
A energia probatória – que vem testar nossa decisão de trilhar o Caminho – surge de duas fontes básicas. A primeira delas é a nossa própria ignorância espiritual e emocional, desconhecida de nós e acumulada no subconsciente. A outra fonte é a ignorância coletiva, igualmente subconsciente. Estas duas fontes são como uma Caixa de Pandora de onde saem testes e oportunidades igualmente inesperados.
O simples fato de “acender a luz” da energia búddhica em nossa alma, ainda que fracamente, já provoca uma alteração e uma desacomodação no carma individual. Em pequena escala, altera-se também o carma coletivo.
Quando os Contratempos Surgem do Nada
Os contratempos parecem, então, surgir do nada e por puro acaso: mas a verdade é que a expansão de consciência sutil libera novas porções do carma acumulado, que antes estavam ocultas. A cada expansão de consciência, surge a necessidade prática de transmutar uma porção correspondente de ignorância, cuja presença em nós era desconhecida. E também se revelam novas possibilidades positivas.
Alguns peregrinos dão um ou dois passos no Caminho e decidem voltar à estagnação. Confrontados com certo número de imprevistos, pensam que é mais seguro ficar na rotina e fugir das incertezas da Caixa de Pandora do Carma. Assim postergam a caminhada. Preferem obedecer ao medo instintivo, até que haja maturidade suficiente em suas almas.
Em outros casos não há desafios desagradáveis, mas surgem oportunidades “positivas” de avanço no mundo, e elas provocam o mesmo efeito de afastar o peregrino do Caminho. Quando, mais tarde, as possibilidades de progresso mundano voltam a se desgastar, nem sempre a oportunidade do aprendizado espiritual ainda está disponível.
No início, a variedade de motivos para que abandonemos o caminho é muito grande. Rancores pessoais, desafios financeiros, afetos familiares, doença de pessoas próximas, ambições de progresso individual nesta ou naquela esfera da vida – qualquer acontecimento físico ou emocional, “positivo” ou “negativo”, pode servir de pretexto para interromper o aprendizado interior.
O carma de curto prazo é como um caleidoscópio atraente e luminoso, que muda incessantemente e usa fortes imagens para chamar nossa atenção. O caleidoscópio do curto prazo testará de mil formas a nossa decisão de caminhar em direção à sabedoria eterna e deixar de lado as experiências que hipnotizam e fascinam as almas demasiado jovens.
O campo de testes da nossa decisão inclui o ambiente profissional e o núcleo familiar. Os laços familiares – assim como a vida de casal – são importantes fontes de testes para nossa coerência. Só gradualmente seremos capazes de vencer os diferentes desafios.
A provação também ocorre em grupos humanos que têm um ideal nobre e elevado. No início, frequentemente tudo parece fácil e as pessoas pensam:
“Estamos todos na mesma onda”.
Passados os primeiros momentos agradáveis, surgem os testes sem aviso prévio; começam as rixas pessoais, as antipatias, e até as mediocridades. Os sentimentos inferiores surgem, disfarçados como se fossem coisas legítimas e “espirituais”. Só pouco a pouco cai a máscara do processo da autoilusão, do qual nenhum estudante está livre, e surge a real sabedoria.
Para vencer os testes, é importante ter autoconhecimento e autocontrole. E também é necessário um estado de espírito incondicionalmente pacífico.
O aprendiz deve formar um estoque pessoal de sentimentos de boa vontade para com os amigos, familiares, colaboradores e colegas de caminhada.
A Boa Vontade Primordial
Este sentimento primordial de boa vontade será usado quando as forças negativas do subconsciente coletivo, ou do subconsciente individual, quiserem convencê-lo de que seus irmãos estão “totalmente errados”, “não sabem de nada”, ou “estão atrapalhando”.
A chave para não julgar de modo injusto os companheiros de caminhada está em lembrar que cada pessoa deve prestar contas fundamentalmente diante do tribunal da sua própria consciência, e que é seu dever responder aos outros apenas pela sua Sinceridade, e pela Honestidade com que TENTA ajudar a Causa comum. E mesmo nisso, mera desconfiança ou acusações infundadas devem ser evitadas.
William Judge escreveu que o problema de pensar demasiado nos erros dos outros é que, desse modo, esquecemos dos nossos próprios erros. Acusações sem dados reais e com base em “palpites”, “intuições” ou “certezas instintivas” são geralmente usadas pelas forças negativas do subconsciente pessoal, ou do subconsciente coletivo, para destruir o respeito mútuo que dá legitimidade a qualquer grupo de idealistas, e também a toda empresa ou grupo familiar.
O ideal de Fraternidade não é um sentimento de amizade pessoal do tipo que pode encontrar-se no Rotary Clube ou no Lions.
Quem quer que adote como meta a fraternidade universal será testado, não só pelo seu próprio subconsciente, mas também pela ignorância acumulada coletivamente pelos seres humanos, o que inclui poderosas forças negativas agindo por meios telepáticos.
Ninguém desafia em vão a maré da ignorância espiritual. Mas também haverá ondas telepáticas benignas, e o aprendiz deve saber focar nelas. Abordando esse tipo de teste e desafio, H. P. Blavatsky escreveu, nos primórdios do movimento esotérico moderno:
“Anteontem à noite, foi-me dada uma visão geral das sociedades teosóficas. Vi uns poucos teosofistas dedicados, confiáveis, em uma luta mortal com o mundo em geral e com outros teosofistas – nominais, mas ambiciosos. Os teosofistas dedicados são maiores em número do que você pode pensar, e eles venceram, como vocês na América do Norte vencerão, se permanecerem firmes em relação ao programa de ação do Mestre e leais a si mesmos.” [1]
Na primeira metade do século 21, o verdadeiro movimento teosófico, embora pequeno, passou da fase pioneira. Os testes continuam os mesmos, mas é possível enfrentá-los com mais estabilidade e de modo mais sereno que nos primeiros tempos.
Em todas as épocas, não é difícil perceber que o fracasso de muitas agrupações humanas ocorre quando existem expectativas e exigências excessivas de uns em relação a outros. Exigências e autoritarismo provocam tensão e frustrações.
O sistema de ação da Loja Independente de Teosofistas (LIT) inclui alguns princípios básicos, dos quais vale a pena destacar três:
1) O princípio de propagar e vivenciar a Teosofia, expressando-a incondicionalmente e sem esperar nada em troca no plano pessoal.
2) O princípio da devoção independente ao ideal comum; ou idealismo com autonomia.
3) Um terceiro ponto, mais interno, diz respeito ao fato universal de que todo conhecimento provoca testes, conforme a natureza e a profundidade do saber que foi adquirido, e de que é melhor estar preparado para eles.
O princípio da independência de cada peregrino não nega, mas afirma, a solidariedade. Cada um sabe de si. Cada um é seu próprio juiz. Mas todos são convidados a colaborar livremente no que há de comum, de modo que não seja suprimida a sua individualidade, nem a sua liberdade e sua responsabilidade em relação à sua própria atuação. São necessárias pessoas com temperamentos, opiniões e aptidões diferentes. Um núcleo de Fraternidade, sendo Universal, tem de zelar pela preservação da diversidade, isto é, daquilo que se poderia chamar de “biodiversidade do espírito”.
Deixando de lado a busca de dominação, passamos a vivenciar nossa grandeza interior. Desse modo temos uma satisfação crescente em ser aparentemente insignificantes diante do ilimitado oceano da sabedoria. Podemos ouvir melhor a voz do silêncio, e desaparece a importância de nomes pessoais ou da meta de “ser alguém” na vida.
Uma das coisas mais originais e até difíceis de entender, no movimento teosófico tal como proposto por H.P.B. e pela Loja Independente de Teosofistas, é a não-imposição de uma uniformidade de visão ou de ação. O que há em comum são alguns princípios universais, uma filosofia, uma busca da verdade, uma literatura e um modo de ver a vida. Mas cada um deve ser o seu próprio intérprete. Cada um deve ser o seu próprio mestre e o seu discípulo, embora ligado por laços de respeito e solidariedade a outros buscadores da verdade. É essa livre solidariedade entre pessoas com temperamentos e ‘backgrounds’ diferentes que permite a construção de um verdadeiro ‘núcleo de fraternidade universal’ e não um núcleo de ‘uniformidade universal’, o que seria uma ideia extremamente infeliz. Seguramente vamos cometer erros e injustiças entre nós. Somos humanos, e os seres humanos têm este hábito. Mas a proposta da LIT inclui uma visão filosófica ampla e calma que, digamos, ‘dá permissão para que erremos, e nos ensina a dar permissão para que os outros errem’.”
Quando há indicações palpáveis sobre má-fé de alguém, devemos ser rigorosos.
Nas outras situações, é fundamental o exercício da boa vontade e da compreensão dos erros alheios. Cada um tem o seu ritmo, o seu temperamento, a sua própria mistura de sabedoria e ignorância. Devemos julgar e condenar os outros apenas quando isso é realmente necessário.
Afirmar o princípio da autonomia e da responsabilidade própria não basta para que se resolvam todos os problemas. Há também a necessidade de discernimento, e ele só surge gradualmente.
Trocando ideias sobre a questão probatória, recebi em 2007 uma carta com estas palavras:
“A grande dificuldade é divisar a trilha, porque às vezes o caminho parece ser por um lado, e lá na frente se descobre que não é bem por ali… Hoje penso que o caminho está mais do lado de dentro do que de fora, mas o plano externo, da concretização, traz um desafio grande, talvez por ser mais visível. É bom saber que ativar a parte búdica do nosso ser provoca mudanças, mesmo que a princípio pouco agradáveis. Serve para dar força.”
O Conhecimento Não Pode Ficar Ocioso
Na resposta a esta mensagem, escrevi:
“Durante as últimas décadas pude observar inúmeras pessoas passando pela fase mais fácil do despertar espiritual – que é muitas vezes um reencontro de aprendizagens feitas em vidas passadas, um déjà vu. Depois da fase inicial, quando esses indivíduos têm que abrir caminho novo, algo que é muito mais difícil, eles perdem o entusiasmo ou, para não perderem o entusiasmo, buscam coisas espetaculares. Às vezes desenvolvem ambições, rancores, posições intransigentes sobre questões secundárias, etc. Em vários casos, se deixam afastar do caminho ou perdem o foco. A verdade é que o despertar espiritual atualiza e desperta Carma que estava adormecido (e esse carma é tanto individual como coletivo).”
Na continuação do diálogo, recebi uma carta mencionando a necessidade de colocar o conhecimento em ação, se quisermos evitar que ele se deteriore. Dizia a mensagem:
“É verdade, hoje já entendo mais que o saber não pode ficar ocioso, senão ‘desanda’, acaba nos fazendo mal. Se adquiro um conhecimento e não o uso, aquilo começa a pesar. E muitas vezes é mais ‘fácil’ fazer de conta que nada aconteceu e se afastar discretamente do campo de provas, alegando as mil coisas que ocupam nosso dia-a-dia. Experimentar as lições que a vida vai nos trazendo é um desafio constante. Depois que li sua mensagem me veio a imagem de estar na arrebentação de uma praia: após um longo tempo à deriva, se chega à terra firme. Mas antes é preciso atravessar a faixa onde as ondas arrebentam. Ninguém resiste ficar ali muito tempo, porque a cada 30 segundos vem uma onda forte e você pode afundar. Creio que os testes, assim como as ondas, continuam sempre. A diferença reside no ponto de onde os observamos… Esses mesmos testes podem ser o estímulo para cruzarmos de vez a arrebentação e chegarmos à areia da praia.”
Penso que a imagem simbólica do mar e da praia é perfeita.
Uma vez na praia firme, nós podemos reconhecer-nos como grãos de areia que estão aos pés do Oceano. Ao mesmo tempo, sabemos que nosso espírito e nosso verdadeiro eu fazem parte, desde sempre e para sempre, daquele Oceano de sabedoria eterna.
Então passamos a ver os testes do ponto de vista da sabedoria, e olhamos o que é transitório do ponto de vista do que é permanente.
NOTA:
[1] Trecho citado em “The Friendly Philosopher”, Robert Crosbie, The Theosophy Company, Los Angeles, 1945, 415 pp., ver p. 389.
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Veja também o texto “Uma Escola Esotérica de Três Mil Anos”, de Carlos Cardoso Aveline, que está disponível em nossos websites associados.
Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
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