Pomba Mundo
 
Visão Altruísta do Mundo Abre as
Portas Para o Bom Senso e a Felicidade
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
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Sempre desejamos agir corretamente. Não há quem não queira fazer as coisas da maneira certa. Mas a vida humana é uma constante lição de humildade: basta observar calma e objetivamente os resultados das nossas ações para perceber a quantidade de erros que cometemos.
 
Às vezes somos impacientes, em outras ocasiões somos preguiçosos. Frequentemente tiramos conclusões apressadas, fazemos injustiças, pensamos bem de gente que não merece para em seguida criticar inocentes. Erramos na vida profissional e na vida familiar. Cometemos equívocos com nós mesmos, e jogamos fora boa parte da nossa energia vital com coisas que não valem a pena.
 
Por causa disso pode haver uma bênção enorme no simples fato de sentar-se por alguns minutos, abandonar a agitação física e mental, e meditar sobre a antiga arte secreta de agir corretamente. Será possível para nós, portugueses e brasileiros do século 21, errar cada dia um pouco menos? Haverá um modo de viver em que não causemos sofrimento a nós e aos outros? Poderemos abandonar o hábito de criticar a tudo e a todos, optando por uma vida mais construtiva, na qual promovamos ativamente o bem?
 
É claro que o pior erro que se pode cometer é não fazer nada. Quando tentamos realizar algo, é possível corrigir os erros. Mas quando nada fazemos estamos apenas jogando tempo fora. Eliphas Levi escreveu em um dos seus livros: “Nada fazer é tão funesto como fazer o mal, porém é mais covarde. O mais imperdoável dos pecados mortais é a inércia.” [1]
 
Sem dúvida. De outro ponto de vista, porém, também é verdade que não há e não pode haver vida humana sem ação. Ler, respirar, permanecer imóvel e conversar são ações tão práticas quanto andar de bicicleta ou plantar verduras em uma horta. Cada ser do universo, pequeno ou grande, tem seu dever, seu potencial, suas várias formas de ação. O desafio não é agir, portanto. É ter consciência e assumir a responsabilidade pelo que se faz.
 
Segundo o escritor Eliphas Levi, “a vida humana com suas inúmeras dificuldades tem por fim, na ordem da sabedoria eterna, a educação da vontade do homem”. E o grande cabalista francês do século 19 acrescenta:
 
“A dignidade do homem consiste em fazer o que quer, e em querer o bem, de conformidade com a ciência da verdade. O bem, conforme a verdade, é o justo. A justiça é a prática da razão. A razão é a expressão da realidade.”
 
Para Eliphas, a ação correta depende de uma vontade firme que busca o que é bom e justo. “Nada resiste à vontade do homem, quando sabe a verdade e quer o bem”, ensina ele. Ao mesmo tempo, a moderação é indispensável e a impaciência pode impossibilitar a vitória: “Querer o bem com violência é querer o mal; porque a violência produz a desordem e a desordem produz o mal.” Ao invés da pressa, a arma do sábio é a paciência:
 
“Para se ter direito de possuir sempre, é preciso querer pacientemente e por muito tempo.” [2]
 
Assim, entre as grandes fontes dos erros que cometemos ao longo da vida estão duas características opostas: a preguiça, que provoca o imobilismo, e a pressa, que produz impaciência. Huitang, um mestre da tradição zen budista, faz cinco constatações úteis para aqueles que preferem viver em paz:
 
“1) Aquilo que tem sido negligenciado desde há muito não pode ser recuperado de imediato.
 
2) Males que têm se acumulado por longo tempo não podem ser extirpados de imediato.
 
3) Não se pode estar satisfeito o tempo todo.
 
4) As emoções humanas não podem ser sempre as corretas.
 
5) As adversidades não podem ser evitadas pela tentativa de fugir delas.
 
Qualquer um que trabalhe como instrutor e que tenha percebido esses cinco fatos poderá estar no mundo sem estar aflito.” [3]
 
O primeiro passo, pois, para quem pretende agir corretamente, é reconciliar-se com o ritmo natural do universo e com a realidade tal como ela é. O segundo passo é agir com calma e inteligência para fazer o melhor possível a partir daquilo que o mundo lhe oferece.
 
Ter uma boa intenção é fundamental. Mas a verdadeira intenção se conhece pelos fatos e não pelas palavras. O critério da verdade é a prática. A árvore se conhece pelos frutos. Por isso, examinar serenamente as nossas próprias ações é a melhor maneira de perceber quanto de sabedoria e de ignorância existe em nós.
 
A caminhada espiritual pode começar com leituras, práticas meditativas e reflexões. Mas o buscador deve estar alerta para os perigos do isolamento e do orgulho. Será melhor que as ações práticas altruístas estejam presentes desde o primeiro momento na caminhada espiritual, ao lado da leitura e da meditação. O conhecimento das coisas espirituais, quando não é aplicado ao bem dos outros, fica preso pelos muros altos do egoísmo. A verdadeira sabedoria não se fecha em si mesma e é inseparável da boa vontade para com os outros. O pensador C. Jinarajadasa escreveu:
 
“As verdades da vida espiritual têm que se transformar. As verdades em que acreditamos devem ser transformadas por nós em verdades que conhecemos em nossas próprias consciências internas (…). Só há um meio pelo qual as verdades adormecidas em nossa natureza humana chegam a ser realidades para a consciência desperta: esse meio consiste em aplicá-las para servir os outros. Meditar sobre as verdades é apenas um processo preliminar, muito parecido com a aprendizagem das letras do alfabeto. Do mesmo modo que a etapa seguinte é unir as letras para formar palavras, também a etapa imediata, depois da meditação, consiste em tornar mais real para a consciência desperta o poder que existe na verdade e que a meditação revelou. Isso ocorre apenas quando nos dedicamos a servir nossos semelhantes. (…) O serviço altruísta, então, não é apenas um modo de ajudar o outro, mas também é essencialmente uma maneira de guiar a nós próprios.” [4]
 
Essa é a essência do que os orientais chamam de Carma Ioga. Agir corretamente, para a ioga da ação desinteressada, é fazer a coisa certa sem esperar recompensa. É plantar e não pensar na colheita. É contentar-se com a alegria de quem sabe que cumpriu seu dever e está feliz com sua consciência. Nem sempre é fácil colocar essa ideia em prática. Os desafios são variados.
 
Existe, por exemplo, uma diferença sutil, mas enorme e decisiva entre buscar a felicidade dos outros por uma decisão autônoma, autêntica e soberana, e tratar de agradá-los e obedecê-los violentando e falsificando nossos próprios sentimentos.
 
Desde a infância, somos ensinados a fazer o que os outros mandam e a não escutar nossa consciência. Deixamos a autenticidade de lado para não contrariar a quem nos dá ordens. Somos vítimas de chantagens emocionais diversas e os mais velhos ou mais poderosos impõem o modo como devemos pensar, sentir e agir. A obediência cega nos é apresentada como altruísmo e bondade, quando é apenas submissão servil, movida quase sempre por alguma forma de medo. É dessa maneira que muitos de nós aprendem a reprimir ou esconder seus pensamentos e sentimentos como o único meio possível de obter a aprovação da família e da sociedade, ou simplesmente de fugir ao castigo que aguarda aquele que pensa por si mesmo. Esse é o amplo caminho falso que leva aos desastres do conflito, da depressão e da hipocrisia. É assim que se provoca a decadência de toda uma sociedade. O filósofo clássico Epicteto ensinou:
 
“Ao tentar agradar outras pessoas, corremos o risco de nos desviarmos para o que está fora da nossa esfera de influência. Agindo assim, perdemos o domínio sobre o propósito da nossa vida. Contente-se em ser alguém que ama a sabedoria, que busca a verdade. Volte quantas vezes for necessário para o que é essencial e valioso. Não tente parecer sábio aos olhos dos outros. Se quer viver uma vida de sabedoria, viva de acordo com suas próprias condições e procure ser sábio a seus próprios olhos.” [5]
 
A ação altruísta mencionada por C. Jinarajadasa não significa, portanto, que devemos abandonar nossa autonomia, suprimir nossa vontade, deixar de lado nossos sentimentos ou optar pela obediência automática. A ação correta significa fazer o melhor possível de acordo com o nosso próprio critério, e obedecer apenas à voz da nossa consciência e do nosso coração. Fazer o bem deve ser uma decisão independente, livre de todas as formas de coação. A ação eficaz também necessita do desenvolvimento da atenção. Para Epicteto, “o mal não é um elemento natural no mundo, nos acontecimentos ou nas pessoas. O mal é um subproduto da negligência, da preguiça, da distração: surge quando perdemos de vista nossa verdadeira meta na vida. Quando lembramos que nossa meta é o progresso espiritual, voltamos a nos empenhar por nosso aprimoramento pessoal e mantemos o mal à distância. E é assim que se conquista a felicidade.” [6]
 
A observação atenta nos mostrará que toda a sabedoria e toda a ignorância da humanidade estão dentro de nós. É verdade que podemos fugir do mundo para viver em meditação e oração. Mas a ignorância irá junto conosco para o nosso retiro, mesmo que ele seja feito em uma montanha longínqua ou em um mosteiro isolado. Ter uma existência produtiva, ainda que nossa tarefa seja humilde e anônima, tem mais valor do que a autoilusão do meditador egoísta.
 
Uma vida ativa, porém, não significa agitação. Quem atua de modo seletivo, interferindo nas questões realmente importantes, preserva seu equilíbrio interno e consegue que o essencial seja feito. “Quando você tem poucas tarefas, naturalmente os seus sofrimentos são poucos”, ensina um antigo tratado taoista. “Quando as suas palavras são poucas, naturalmente os problemas são poucos. Quando você come pouco, naturalmente fica menos doente. Quando você tem poucos desejos no coração, naturalmente tem poucas preocupações.” [7]
 
Para agir com eficácia, também devemos estabelecer e manter um equilíbrio correto entre esforço e descanso, ação e inação, palavra e silêncio, tensão e relaxamento. Esses vários fatores são indispensáveis para o êxito e a felicidade, mas é necessária uma boa dose de talento para combiná-los de modo adequado.
 
Um dos fatores decisivos para agir corretamente é o discernimento, que permite distinguir o que é verdadeiro e o que é falso. Uma obra taoista clássica, atribuída a Lao-tzu, explica:
 
“Todos os pontos de vista de uma pessoa, todos os conceitos sobre avida e todas as convicções religiosas são uma manifestação de sua energia. Se a mente de uma pessoa sofreu severo condicionamento, é como se ela medisse tudo com uma régua torta: a essa pessoa não é dado jamais medir o que quer que seja com exatidão. Ela deve endireitar e aperfeiçoar seu instrumento de medida, pois, se um instrumento é defeituoso, a pessoa não pode perceber o real com precisão. Quando o sistema nervoso de um ser humano é corrigido e aperfeiçoado, ele se torna sereno e objetivo. Então, é possível ver claramente e descobrir que, embora haja diversidade no universo, há unidade por trás dessa diversidade.” [8]
 
Ação e discernimento são inseparáveis. É agindo que ganhamos a experiência necessária para saber situar-nos corretamente nas situações práticas da vida. E só tendo discernimento podemos obter bons resultados com as nossas ações. A ação correta que resulta disso se dá em todos os níveis simultaneamente, do individual ao coletivo. Quem governa a si mesmo também pode inspirar ou liderar outras pessoas, tanto na família quanto no trabalho, na associação comunitária e no grupo espiritualista. Mas a base do discurso é a prática. O ensinamento deve vir primeiro pelo exemplo, e só depois pelas palavras.
 
Vejamos um exemplo. A tradição budista conta que, muito tempo atrás, havia um rei notavelmente bem-sucedido na tarefa de governar seu país. Ele era conhecido como “o rei da grande luz”. Certa vez pediram a ele que descrevesse, em poucas palavras, a arte de liderar um povo. E ele disse:
 
“A melhor maneira de governar um país é, em primeiro lugar, governar a si mesmo. O governante deve colocar-se diante de seu povo com um coração cheio de compaixão, e deve ensinar e liderar as pessoas na tarefa de remover todas as impurezas das suas mentes. A felicidade que surge dos bons ensinamentos é muito maior que a satisfação oferecida pelas coisas materiais e mundanas. Portanto, ele deve dar bons ensinamentos a seu povo e manter as mentes e os corpos das pessoas em um estado de tranquilidade.”[9]
 
Quando as elites governantes de um país são decadentes e irresponsáveis, e quando os dirigentes públicos governam através de fraudes e mentiras, o povo pobre segue o exemplo dos seus líderes e os crimes e a violência se espalham pelo país. Por outro lado, sempre que há líderes honestos – seja em um pequeno grupo de pessoas ou num grande país – o exemplo positivo também se espalha e assim surge um clima de justiça, harmonia e bem-estar. A esse respeito, o antigo “rei da grande luz” ensinou algo que vale também para a educação dos nossos filhos:
 
“Quando as pessoas pobres vêm até o governante, ele deve abrir seus armazéns e deixar que levem o que quiserem, e depois aproveitar a oportunidade para ensinar às pessoas a sabedoria que existe em libertar-se de toda cobiça e de toda maldade.” [10]
 
Isso não significa que você deve dar literalmente todo seu rendimento mensal para que seus filhos o gastem como quiserem, nem que um empresário deve aumentar os salários dos seus empregados de modo irresponsável. Tampouco é recomendável que o presidente de um país tome medidas que favorecem o povo mas que não são sensatas e viáveis a longo prazo. “Abrir seus armazéns e deixar que as pessoas levem o que quiserem” significa compartilhar, solidariamente, a sorte do povo trabalhador. Significa dar um exemplo pessoal de desapego em relação aos bens materiais, ter como meta o bem-estar das pessoas, e nunca roubar a nação como um ladrão e um traidor.
 
Assim, a eficiência na ação é inseparável da justiça e da solidariedade que devem surgir do coração. A visão altruísta do mundo aumenta nossa sensibilidade, clareia nossa visão e livra-nos das distorções causadas pela cobiça e pelo medo. Desse modo se abrem as portas para o bom senso e a felicidade.
 
NOTAS:
 
[1] “A Chave dos Grandes Mistérios”, Eliphas Levi, Ed. Pensamento, SP, p. 213.
 
[2] “A Chave dos Grandes Mistérios”, Eliphas Levi, obra citada, pp. 209-212.
 
[3] “A Arte da Liderança, Ensinamentos Zen”, Thomas Cleary, Editora Siciliano, SP, p. 49.
 
[4] C. Jinarajadasa, em mensagem publicada na revista “El Teósofo”, Córdoba, Argentina, na edição de fevereiro-março de 1950.
 
[5] “A Arte de Viver”, Epicteto, versão de Sharon Lebell, Ed. Sextante, RJ, p. 57.
 
[6] “A Arte de Viver”, Epicteto, obra citada, p. 63.
 
[7] “Meditação Taoísta”, obra compilada por Thomas Cleary, Ed. Teosófica, Brasília, p. 40.
 
[8] “Hua Hu Ching, Os últimos ensinamentos de Lao Tzu”, de Hua-Ching Ni, Ed. Pensamento, SP, ver pp. 76-77.
 
[9] “The Teaching of Buddha”, coletânea budista editada pela instituição japonesa Bukkyo Dendo Kyokai, de Tóquio, em 1966, e que tem 307 pp. Veja, ali, a p. 231.
 
[10] “The Teaching of Buddha”, obra citada, p. 231.
 
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O texto acima foi publicado inicialmente na revista “Planeta” de São Paulo, e mais tarde na revista “Bodigaya”, de Porto Alegre, em sua edição número 19.  
 
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Veja aqui um vídeo de um minuto, produzido pelos nossos websites associados: 

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