O Foco Central de um Projeto de Longo Prazo
Carlos Cardoso Aveline
Helena P. Blavatsky e Henry S. Olcott, na década de 1880
O movimento esotérico moderno foi criado em Nova Iorque em 1875. Os seus dois principais fundadores são Helena Blavatsky e Henry Olcott. A importância de William Q. Judge, que participou da fundação, só ficou clara posteriormente.
Os objetivos declarados deste movimento, em sua formulação mais conhecida, são os seguintes:
1) Formar o núcleo de uma Fraternidade Universal da Humanidade, sem distinção de raça, credo, sexo, casta ou cor;
2) O estudo de religiões, filosofias e ciências antigas e modernas, e a demonstração da importância de tal estudo;
3) A investigação das leis inexplicadas da Natureza e dos poderes psíquicos latentes no homem.
Com algumas variações, os três objetivos descritos acima são adotados pelas várias linhas de trabalho teosófico existentes hoje no mundo. No entanto, as metas são complexas e abrangentes. Elas transcendem as palavras e podem ser expressadas de diversas formas. Em um texto de outubro de 1886 que também é conhecido como “O Programa Original da Sociedade Teosófica”, H.P. Blavatsky incluiu informação valiosa que até hoje nem todos conhecem.
Ao narrar os objetivos do movimento no momento da sua fundação, ela escreveu que as crenças cegas religiosas devem ser desmascaradas, e que as energias sutis da vida, positivas e negativas, precisam ser descritas e identificadas para que as ilusões sejam destruídas.
Do ponto de vista prático, essa tarefa cria um dilema. É preciso achar um modo de promover a fraternidade universal e ao mesmo tempo combater o fanatismo e a hipocrisia das principais religiões. Será possível fazer isso sem parecer intolerantes?
A vida tem mostrado que essa tarefa é inevitável, mas apresenta obstáculos. Alguns ainda pensam que a prática da fraternidade proíbe o estudante de fazer críticas. Essa é uma perigosa ilusão. Cabe combinar, isso sim, uma mente aberta com uma firmeza de princípios. A prática da amabilidade não autoriza ninguém a omitir-se diante do erro e da fraude.
Descrevendo em 1886 os objetivos do movimento, H. P. Blavatsky escreveu:
“Enviada aos Estados Unidos da América em 1873 com o propósito de organizar um grupo de trabalhadores em um plano psíquico, dois anos mais tarde a autora do presente texto recebeu ordens do seu Mestre e Instrutor para formar o núcleo de uma Sociedade cujos objetivos foram genericamente definidos como segue:
1) Fraternidade Universal;
2) Nenhuma distinção deveria ser feita pelos membros entre raças, credos ou posições sociais, mas cada membro deveria ser julgado e tratado apenas em função dos seus méritos pessoais;
3) Estudar as filosofias do Oriente – especialmente as da Índia, e apresentá-las gradualmente ao público em várias obras que devem interpretar as religiões exotéricas à luz dos ensinamentos esotéricos;
4) Fazer oposição de todas as formas possíveis ao materialismo e ao dogmatismo teológico, demonstrando a existência de forças ocultas na Natureza, desconhecidas pela Ciência, e a presença de poderes psíquicos e espirituais no Homem; e tentar, ao mesmo tempo, ampliar os pontos de vista dos espíritas mostrando a eles que há outras, muitas outras forças em ação na produção de fenômenos psíquicos além dos ‘Espíritos’ dos mortos. As superstições deveriam ser denunciadas e evitadas; e as forças ocultas, benéficas e maléficas – que sempre nos rodeiam e manifestam suas presenças de vários modos, deveriam ser demonstradas da melhor maneira possível.”
E Blavatsky prosseguiu:
“Esse era o programa de ação em suas linhas gerais. Não foi dito aos dois principais fundadores o que eles tinham de fazer, como eles tinham que provocar e acelerar o crescimento da Sociedade e os resultados desejados; eles tampouco receberam quaisquer ideias definidas com relação à organização externa – tudo isso foi deixado inteiramente a cargo deles. Assim, como a abaixo-assinada não tinha capacidade para a formação e a administração mecânicas de uma Sociedade, a sua direção foi deixada nas mãos do coronel H.S. Olcott, escolhido naquela ocasião pelos fundadores e membros iniciais como Presidente vitalício. Mas ao mesmo tempo que não foi dito aos dois fundadores o que eles tinham que fazer, eles foram claramente instruídos sobre o que eles jamais deveriam fazer, o que eles tinham que evitar, e o que a Sociedade nunca deveria se tornar. Organizações de Igrejas, seitas Cristãs ou espíritas foram mostradas como futuros contrastes à nossa Sociedade.”
E para esclarecer ainda mais, Blavatsky enumerou dois pontos:
“1) Os Fundadores tinham que exercer toda a sua influência para fazer oposição a egoísmo de qualquer tipo, insistindo em sentimentos sinceros e fraternos entre os membros – pelo menos externamente; trabalhando para que o Movimento produzisse um sentimento de unidade e harmonia, apesar da grande diversidade de crenças; esperando e exigindo dos Membros uma grande tolerância mútua e compaixão de cada um pelos defeitos do outro; ajuda mútua na pesquisa de verdades em qualquer área de conhecimento, moral ou física, e mesmo na vida diária.
2) Eles tinham que se opor da maneira mais intensa possível a qualquer coisa que se aproximasse de fé dogmática e fanatismo – a crença na infalibilidade dos Mestres, ou mesmo na mera existência dos nossos Mestres invisíveis, devia ser combatida desde o início. Por outro lado, como era exigido um grande respeito pelas opiniões pessoais e crenças de todos os membros, qualquer membro que criticasse a fé ou a crença de outro membro, ferindo seus sentimentos ou mostrando uma autoafirmação repreensível, não solicitada (conselhos mútuos amigáveis eram um dever, a menos que recusados) – tal membro sofreria expulsão. Tinha que ser encorajado o maior espírito de livre pesquisa, sem que fossem colocados impedimentos por ninguém e por coisa alguma.” [1]
O Paradoxo da Fraternidade
Pesquisa é fundamental em teosofia. Acreditar sem fundamento em alguma coisa é nocivo.
Uma grande diferença entre uma igreja e uma escola filosófica é que para a igreja o mais importante é a crença, e o debate é algo que atrapalha a fé cega; enquanto que para uma escola de filosofia a atividade principal é a pesquisa, e nela o debate honesto, impessoal, respeitoso, é bem-vindo e até indispensável.
O movimento teosófico deve evitar uma aparência de tolerância em que não haja direito a debate ou sinceridade, supostamente para não ferir os sentimentos daqueles que alimentam uma fé cega ou uma rotina mental.
A abertura de horizontes é saudável, mas a “tolerância” em relação a quebra de princípios éticos é inaceitável por um motivo muito prático: produz maus frutos.
Deve haver firmeza na ética e uma flexibilidade na forma de pensar. Devemos ter um pensamento universal, capaz de fazer a síntese entre diferentes tradições, sem aceitar ausência de honestidade. E precisamos critério e sabedoria para administrar diariamente esse aparente paradoxo.
A universalidade das religiões significa que diferentes tradições se encontram em “algum lugar”. E o “lugar” em que as diferentes religiões se encontram tem que ser o respeito pela verdade.
As árvores se conhecem pelos frutos, e os frutos das religiões e das filosofias são, naturalmente, as ações práticas dos seus estudantes ou seguidores. Uma bela “filosofia”, sem belas ações, é apenas uma forma de encobrir o fracasso. Daí a centralidade da ética.
Há um contraste aparente entre a universalidade que abrange as diferentes tradições e a promoção de uma ética vivida de fato na vida diária. Esta última pode ser vista como rigidez, por pessoas sem princípios. E a contradição provoca dificuldades. O paradoxo produz testes e provações indispensáveis para que o aprendizado seja real.
São muitas as lições que surgem, na medida em que se tenta alcançar na prática diária os objetivos centrais do movimento inaugurado em 1875 em Nova Iorque. O lento progresso nesta direção abre pouco a pouco uma página nova na evolução da humanidade.
NOTA:
[1] Do livreto “Theosophical Objects, Program and Organization”, H.P. Blavatsky, The Theosophy Company, Los Angeles, Califórnia, EUA, 38 pp., ver pp. 16-18. Essa é a primeira parte do documento. O texto também foi publicado sob o título de “The Original Programme of the Theosophical Society” na revista mensal “The Theosophist”, Adyar, Madras, Índia, edição de agosto de 1931, ver pp. 561-564 para os trechos traduzidos aqui.
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Leia também o artigo “O Quarto Objetivo dos Teosofistas”, de C. C. Aveline, que está disponível em nossos websites associados.
Para conhecer um diálogo documentado com a sabedoria de grandes pensadores dos últimos 2500 anos, leia o livro “Conversas na Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.
Com 28 capítulos e 170 páginas, a obra foi publicada em 2007 pela editora da Universidade de Blumenau, Edifurb.
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