As Obras do Diretor Japonês
São Lições de Respeito Pela Vida
Carlos Cardoso Aveline
Akira Kurosawa
O japonês Akira Kurosawa não foi apenas um grande diretor de cinema. Usando uma linguagem cinematográfica talentosa, ele transmitiu sabedoria e ética durante 50 anos a multidões de todas as idades. Kurosawa teve sucesso de bilheteria como poucos. Sua obra permanece e permanecerá viva. Mas ele era um samurai do mundo das ideias, um guerreiro, e atribuiu o seu sucesso precisamente ao fato de jamais fazer um filme priorizando o êxito comercial.
Nascido em 23 de março de 1910, ele viveu 88 anos e pode ser considerado o maior diretor e roteirista de cinema de todos os tempos, desde o ponto de vista da filosofia esotérica.
Sua influência sobre outros diretores de cinema é enorme. Ele produziu 35 boas obras cinematográficas ao longo de cinco décadas de trabalho – de 1943 a 1993. Vários dos seus filmes são adaptações diretas de obras de William Shakespeare e Fiódor Dostoievsky, mas ele também foi influenciado por Leon Tolstoi, Máximo Gorki e outros grandes escritores. Apesar desse diálogo amplo com a literatura mundial, Kurosawa tem uma voz extremamente própria. Mestre da compaixão e da fraternidade sem fronteiras, sua obra é ao mesmo tempo profundamente japonesa e zen-budista. Dono de uma visão universal e essencialmente teosófica, ele resgata a tradição dos samurais. Marcado pelas tradições do Oriente, ele reflete sobre a dor humana, a primeira nobre verdade de Gautama Buddha, enquanto luta pela ética e pela justiça nas relações sociais. A natureza, e a sua preservação, são outra constante em sua obra.
Um Cinema que Ensina a Viver
Cerca de 30 filmes de Kurosawa podem hoje ser facilmente adquiridos no Brasil através das boas livrarias. Entre eles estão “Ikiru” (“Viver”), “Rapsódia em Agosto”, “O Barba Ruiva”, “Derzu Usala”, “Depois da Chuva” e “Madadayo”.
Em “Ikiru”, um burocrata de carreira – perto de aposentar-se – descobre que irá morrer em breve devido a uma doença incurável, mas consegue redimir-se através da solidariedade para com todos os seres. “Rapsódia em Agosto” é a história de uma família geograficamente dividida entre vários países, que revive a destruição causada pelas bombas atômicas no Japão em 1945. Em “O Barba Ruiva”, um grande médico defende a vida dos pacientes do hospital que dirige, enquanto luta com suas limitações e transmite coerência e sabedoria aos que o rodeiam. “Derzu Usala”, um dos filmes mais famosos de Kurosawa, é uma história de amizade, coragem e respeito pela natureza. “Depois da Chuva” conta a luta de um guerreiro budista e mostra como ele consegue vencer as dificuldades, mesmo enquanto segue princípios éticos em um mundo marcado pelo materialismo e pela ignorância. “Madadayo” é um dos filmes mais agradáveis e mais teosóficos de Akira Kurosawa. Através de uma bela história humana, o diretor faz uma reflexão poética e prática sobre o processo do envelhecimento e da morte, que ele descreve como uma feliz transcendência em direção ao mundo sutil e a uma nova vida.
Outra obra-prima de Kurosawa é “O Idiota”, filme baseado no romance de Dostoievsky. O fato único deste filme é a descrição vívida de como é tratada a alma espiritual – Buddhi, o Cristo interno – quando ela aparece com toda força na sociedade materialista. Totalmente destituído de astúcia pessoal ou de mecanismos de autodefesa emocional, o príncipe que personaliza Cristo, ou Buddhi, é tratado como idiota e débil mental. A narrativa contém um estudo sobre a impossibilidade de um grande instrutor viver na atmosfera psíquica média da atual humanidade. É um filme de valor teosófico inestimável. No entanto, o final da narrativa tem um peso emocional excessivo, que arrasta para baixo o filme como obra de arte. Kurosawa não quis fazer no filme um final alternativo, que pudesse ser menos infeliz que o modo como culmina o romance de Dostoievski.
O Caminho da Ética
É desnecessário dizer da beleza visual dos filmes de Kurosawa. Em filmes preto-e-branco ou coloridos, ele foi um mestre e um gênio das artes visuais. Seus retratos dinâmicos da paisagem natural são únicos e têm um forte valor espiritual e meditativo. Por isso os diálogos em seus filmes podem ser calmos, lentos e reflexivos.
As lealdades e traições entre generais e líderes políticos são analisadas em “Trono Manchado de Sangue”, um filme que recria o clima dos dramas de Shakespeare. Cabe registrar o fato de que a luta entre traição e lealdade em Shakespeare e Kurosawa serve para simbolizar o conflito que ocorre em cada alma humana. Todo aprendiz da Sabedoria necessita optar constantemente entre a Verdade e a Comodidade, e a escolha nem sempre é fácil. Este mesmo tema geral inspira o filme “Homem Mau Dorme Bem”, uma adaptação livre de “Hamlet”. “Ran”, do mesmo grupo de filmes, é uma adaptação de “O Rei Lear”, de Shakespeare. Como no caso de “O Idiota”, “Ran” parece ser excessivamente sombrio no seu clima geral, mas Kurosawa apenas mantém o tom da obra original do dramaturgo inglês.
“Os Sete Samurais” e “Depois da Chuva” – ao lado de “Kagemusha”, “Yojimbo”, “Sanjuro”, “A Fortaleza Escondida”, “A Espada da Maldição” e “Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre”, formam o grupo de filmes sobre samurais. Todos eles são obras reflexivas, e transmitem profundas lições de ética e sabedoria.
* Em “Céu e Inferno”, um pai tem de defender seu filho pequeno em condições dramáticas. O fato de que ele não abandona a ética faz com que passe a ver a vida com outros olhos.
* “O Escândalo” discute a manipulação da opinião pública por parte de uma imprensa irresponsável.
* “Rashomon” foi um grande sucesso em seu tempo, e pode ser descrito como profundo, mas talvez não mereça ser considerado um dos melhores filmes de Kurosawa.
* Em “Cão Danado”, um jovem detetive da polícia civil aprende muito mais do que o método correto para investigar um pequeno delito.
* “Duelo Silencioso” é a história de um médico que deve fazer um supremo sacrifício para seguir fiel a seu juramento de defender a vida – e para proteger a mulher que ama.
* Em “O Anjo Embriagado”, um médico que sofre de dependência alcoólica enfrenta com bravura o crime organizado, e pretende permanecer leal até o fim à sua consciência e ao ideal da sua profissão.
* “Juventude Sem Arrependimento” é a história de jovens militantes com ideias progressistas.
* “Um Domingo Maravilhoso” descreve um dia de lazer de um jovem casal pobre, durante o Japão do pós-guerra.
* “Anatomia do Medo” conta o drama de um empresário rico e chefe de família que, durante a guerra fria, é tomado pelo medo de uma guerra nuclear e deseja emigrar para o Brasil.
* Em “A Mais Bela”, Kurosawa conta uma história de sacrifício e solidariedade humana em tempos de guerra.
* “Donzoko” descreve a vida dos mais pobres e miseráveis, e pode ser descrito como um estudo sobre o sofrimento humano.
Dodes’ka-den, Fora do Comum
O filme “Dodes’Ka-den” (“O Caminho da Vida”) é estranho, não-linear, fora do comum. Com seus personagens pobres, ingênuos e profundos, constitui um poema visual sobre o estado humano do ser. No contexto de uma viva compaixão universal, este filme de 1970 mostra um painel poético-realista de seres do povo, cada um com seu mundo próprio de sonhos e seu universo particular. O filme é uma metáfora da vida humana, em que cada um vive a atmosfera sonhadora da sua própria aura.
De fato, em geral, o que é realidade para um ser humano é sonho para o outro. Este sonha com um emprego melhor, aquele outro com a loteria esportiva. O cético “materialista” coloca toda a sua fé na ilusão material, assim como o espiritualista vive o seu sonho, que nem sempre é muito sensato. O mesmo fazem o torcedor de futebol, o ativista político, o pássaro livre e o cachorro doméstico. Cada ser vive os seus sonhos, tanto durante o estado de vigília quanto durante o sono propriamente dito.
O idealismo universalista da doutrina teosófica é como um sonho superior no qual, paradoxalmente, adquirimos consciência do estado de sonho em que estamos. É neste sentido que a ciência teosófica ou esotérica é objetiva: porque, através dela, podemos adquirir consciência do sonho em que vive a nossa humanidade, e no qual nós mesmos estamos incluídos.
Neste grande Sonhar coletivo que se chama de Realidade, há níveis e níveis. E quando alguém decide buscar o estado de Plena Atenção e deixar de lado as inúmeras camadas de ilusão, a cada passo adiante ocorrem pressões para que seja dado um passo atrás.
Após ver “Dodes’Ka-den”, um estudante de teosofia pode ter uma visão mais nítida e uma aceitação mais humana da ilusão em que vivem imersas as pessoas supostamente objetivas que pensam somente nos seus “problemas pessoais” e suas “metas individuais”. O sonho da suposta objetividade nem sempre realista, porque costuma ignorar as grandes questões da vida, que são inevitáveis.
O silêncio meditativo é uma prática que leva a parar o sonho. Na ausência de ruído mental ou emocional, tomamos um caminho do meio entre o sonho e a vigília e alcançamos algo da verdadeira contemplação. Durante este processo, descobrimos, no plano livre e abstrato da mente, algo muito mais objetivo do que os sonhos materialistas ou de ordem pessoal.
A Utopia da Aldeia Sem Nome
“Sonhos” (de 1990) é uma das obras mais otimistas e mais famosas de Kurosawa e um filme que faz pensar. Trata-se de uma coleção de contos, ou poemas orientais em forma visual. Todos os episódios de “Sonhos” são excelentes. Vale a pena olhar um ou dois e fazer uma pausa, para que a visão de um episódio não apague demasiado rapidamente a impressão causada pelo anterior. E é recomendável olhar mais de uma vez o filme.
Os contos de “Sonhos” têm uma dimensão iniciática, e o último deles pinta a Utopia de Kurosawa.
Um personagem do final do século vinte, caminhando com uma mochila às costas, chega a uma aldeia ideal, um pequeno paraíso ecológico situado fora da geografia conhecida.
O visitante senta para conversar com um velho habitante da vila, já com 103 anos de idade. O ancião faz uma crítica extremamente lúcida da sociedade industrial. Ele mostra a ausência de significado no “progresso” materialista e sem alma. Ele formula uma proposta tão simples como clara e profunda para a civilização do futuro. Ele faz uma exaltação sem igual do amor à vida como algo que transcende a forma, mas que, por isso mesmo, sabe respeitar a forma. O velho fala com poucas palavras de um amor universal e sem limites que é maior que a vida física, mas que ao mesmo tempo tira o melhor proveito da vida e conhece bem o seu imenso valor.
Os habitantes da Aldeia vivem todos com saúde, até uma idade avançada. E quando morrem, os funerais são felizes celebrações da vida que se completou. Em meio ao paraíso ecológico, o visitante conversa com o velho sábio:
“Qual é o nome desta vila?”
“Não tem nome”, é a resposta. “Nós a chamamos apenas de ‘A Vila’. Algumas pessoas a chamam de ‘Vila dos Moinhos’.”
Aqui Kurosawa faz uma dupla alusão. Uma vila sem nome é uma utopia, um não-lugar, o lugar ideal. Mas esta vila sem nome também pode ser chamada de Vila dos Moinhos, ou Vila das Rodas D’Água. Esta é a imagem simbólica da Roda da Vida, o Samsara budista, que, sendo um moinho, mói incessantemente a ignorância humana e a transforma o tempo todo em lições de sabedoria, em alimento espiritual.
O visitante pergunta: “Não há eletricidade aqui?”
“Não é necessário”, responde o velho. “As pessoas ficam muito habituadas à comodidade. Elas pensam que a comodidade é melhor. Elas jogam fora o que verdadeiramente bom.”
“Mas e a iluminação?”
“Nós temos velas e óleo de linhaça”.
“Mas a noite é muito escura”.
“Sim. É isso é natural. Por que haveria a noite de ser tão clara quanto o dia? Eu não gostaria de noites claras, pois não conseguiria ver as estrelas.”
“Vocês têm arrozais. Não usam tratores cultivá-los?”
“Não precisamos disso. Temos cavalos e vacas.”
“O que usam como combustível?”
“Lenha, principalmente. Nós não nos sentimos bem derrubando árvores. Bastam aquelas que caem por si mesmas. Nós as cortamos e as usamos como lenha. E se você fizer carvão a partir da lenha, algumas poucas árvores lhe darão tanto calor quanto uma floresta inteira. Sim, e esterco de vaca dá também um bom combustível. Tentamos viver da maneira como o homem vivia antes. Esse é o caminho natural da vida. As pessoas hoje esqueceram; mas elas são na verdade apenas uma parte da natureza. No entanto, elas destroem o meio ambiente, do qual a nossa vida depende. Elas sempre pensam que conseguem fazer algo melhor. Especialmente os cientistas. Eles podem ser espertos, mas a maior parte deles não compreende o coração da natureza. Só inventam coisas que no final tornam as pessoas mais infelizes. No entanto, ficam muito orgulhosos de suas invenções. O pior é que as pessoas também se orgulham. Elas as veem como se fossem milagres. Idolatram-nas. As pessoas não sabem, mas estão perdendo a natureza. Elas não veem que caminham para a destruição. As coisas mais importantes para os seres humanos são ar limpo, água limpa, as árvores e vegetação. Tudo isso está sendo sujado e poluído para sempre. Ar sujo, água suja. Estão sujando os corações dos homens.”
Além do filme “Sonhos”, o tema da utopia comunitária está presente naquele que é provavelmente o mais famoso dos filmes de Kurosawa – “Os Sete Samurais”. Nesta obra, o diretor conta a história de um pequeno número de guerreiros que decidem ajudar os moradores de uma aldeia pobre a se defenderem de grupos de bandidos armados.
A presença do sábio, a possibilidade da paz, a vivência da compaixão universal e os dramas shakespeareanos sobre traição e lealdade e a influência budista são marcas registradas de muitos filmes do pensador japonês. Cada obra de cinema era para ele um novo desafio, e raramente era fácil. Em seu livro autobiográfico, ele conta:
“Sempre, em determinado ponto, ao escrever meus roteiros, sinto vontade de desistir de tudo. Com minhas várias experiências, no entanto, aprendi uma coisa: se encaro com firmeza esse vazio e desespero, adotando a tática de Bodhidharma, o fundador do budismo Zen, que olhou fixamente o muro existente em seu caminho até que suas pernas se tornassem inúteis -, um caminho se abrirá.” [1]
Essa mesma experiência de Kurosawa é válida para muitas situações na vida.
NOTA:
[1] “Relato Autobiográfico”, Akira Kurosawa, Editora Estação Liberdade, SP, terceira edição, 1993, 293 pp., ver p. 230.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
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