Superando o Aparente
Conflito Entre Dois Pontos de Vista
John Garrigues
A menos que a teosofia tenha algo definido a oferecer ao homem comum, ela bem pode desaparecer do campo de interesse humano. Caso a sua missão seja dirigida apenas a grupos de curiosos e gente que está interessada em obter conhecimento, a teosofia não merecerá a devoção daqueles que a promulgam e defendem.
Se ela é inadequada para qualquer uma das necessidades humanas, se ela se afasta confusa diante de algum problema que envolva o destino e o futuro, se não consegue tornar a vida mais digna de ser vivida e a morte mais digna de ser enfrentada, os seus defensores bem podem admitir, então, que desperdiçam as suas energias e dedicam suas vidas a algo que não vale a pena.
Mas é ao homem comum que a teosofia dirige o seu principal apelo. É para as massas humanas – e não para os poucos ou para os eleitos – que os seus principais presentes são oferecidos. Ela convida para o seu estudo todos os que gostariam de ver uma lei organizadora da vida, ao invés do acaso caótico. Ela convida os que estão dispostos a reconhecer as operações de uma absoluta justiça dominando os assuntos humanos; os que gostariam de entrar conscientemente em uma existência individual cuja imensidão não está limitada pela morte ou por mudanças.
Ao protestar contra o poder limitante das religiões, não devemos subestimar o efeito da crença sobre a ação e sobre o caráter. Cada ato das nossas vidas é governado pelas nossas concepções de autointeresse, embora essas concepções possam ser tão elevadas que passam a ser com frequência distorcidas e degradadas. Entre os pobres, aquele que trabalha intensamente é motivado por um sentido elevado de autointeresse que exige trabalho e compaixão. O ladrão acredita que será beneficiado por seu roubo. A crueldade, a ganância, e a paixão são todos sentimentos honestos se vistos do ponto de vista de que são interpretações, ou melhor, distorções, do interesse pessoal. Nossas ações estarão sempre de acordo com as visões que temos da vida, do tempo e da lei divina. A crença governa a conduta. Ela é a fita métrica pela qual medimos a importância dos acontecimentos e o significado deles para nós. Uma hora de luz solar é a vida de um mosquito, uma nuvem é a sua tragédia, uma gota d’água a sua extinção. O período de alguns minutos é o seu padrão de valores.
Parece, assim, que a religião – apenas outro nome para a filosofia – é na verdade um padrão de valores. Uma crença religiosa é uma fita métrica pela qual medimos a importância dos acontecimentos. Se concebemos a vida humana como sendo limitada pelo nascimento e pela morte, e se pensamos que há um nada antes da vida e uma aniquilação depois dela, é óbvio que todos os acontecimentos parecerão grandes em proporção inversa à brevidade do período. Uma criança chora pelo brinquedo quebrado porque a sua concepção de vida é tão estreita que faz esse pequeno acontecimento parecer uma tragédia. O seu padrão de valores é inadequado. Se ampliarmos a nossa concepção do tempo e da vida, estaremos reduzindo o tamanho relativo dos seus eventos e mudaremos completamente o ângulo de visão.
Do mesmo modo, um ponto de vista religioso ou filosófico pode mudar a nossa percepção do que é interesse próprio. Se aceitarmos a ideia de uma vida individual perpétua e consciente devemos, no mesmo momento, revisar o modo como calculamos o valor das coisas. Se acreditarmos que a vida perpétua e individual é governada por uma lei precisa de causa e efeito, estaremos tranquilos diante das dificuldades porque saberemos que foram criadas por nós mesmos, e teremos a esperança de um futuro em que haverá menos sementes más para germinar.
Reconhecendo a unidade da vida que se estende por todo o universo, teremos cuidado para não agredir a nenhuma das suas manifestações, e reconheceremos que a fraternidade não é apenas um sentimento, mas uma lei em vigor que não pode ser evitada. Ao perceber o domínio de uma lei imutável e irresistível que se movimenta inexoravelmente para sua meta, teremos aprendido a afastar o medo do coração. Todas estas coisas são realizações práticas. Não existe uma só pessoa a quem elas não digam respeito. Elas estão ao alcance do intelecto humano médio. E dão à vida uma confiança, uma força e uma tranquilidade que não poderiam vir de qualquer outra fonte.
É evidente, portando que cada homem tem algum tipo de filosofia de vida, mesmo que ela não tenha sido formulada, e mesmo que ele não tenha consciência da sua existência.
Todo homem sem exceção está tentando ser feliz, e sua vida é governada por alguma estratégia pela qual ele acredita que alcançará a felicidade. Todo homem tem algum padrão de tempo, normalmente a duração da sua própria vida, ou até a duração da sua juventude, pelo qual ele mede a importância das coisas que acontecem a ele. A teosofia, assim, faz um duplo apelo ao homem médio. Ela tenta mostrar como ele pode adquirir uma felicidade verdadeira e permanente. E tenta dar a ele um novo padrão de tempo de modo que ele possa revisar o valor relativo das suas diferentes experiências diárias.
Mas a teosofia não busca atingir o seu objetivo pela imposição de dogmas nem pelo peso da autoridade espiritual. Ela pede apenas que haja uma observação corajosa dos fatos conhecidos, e convida a fazer deduções lógicas a partir destes fatos. Em outras palavras, a teosofia apela ao conhecimento universal e à capacidade de raciocinar.
Examinemos então os dois grupos de fatos mais claros para nós, isto é, os fatos da consciência e os fatos da experiência.
É óbvio que a consciência e o caráter estão sendo continuamente mudados pelos fatos da experiência. Cada evento que acontece a nós acrescenta algo ao conhecimento que governa as nossas ações futuras. Em outras palavras, o fato muda o nosso caráter, por menor que seja a mudança. E cada uma destas alterações aumenta a nossa felicidade, ou a reduz. Isso é tão verdadeiro que todo homem faz para si mesmo uma certa lista das coisas que ele não deve fazer porque trazem infelicidade, e das coisas que ele deveria fazer, porque elas trazem felicidade. Ele pode estar inteiramente errado nesta avaliação, a sua conclusão pode ter como base a ignorância, mas pelo menos ele tentou avaliar e diferenciar as coisas que são boas para ele e as coisas que são más.
E cada experiência vivida, seja boa ou má, mudou o seu caráter. É evidente, portanto, que a natureza está tentando ensinar algo a ele, que na medida em que o seu caráter está sendo constantemente mudado pela experiência, deve haver em algum lugar na grande mente da natureza uma destinação, um plano, uma intenção. Se vemos os alicerces e a estrutura de uma casa inacabada, podemos conhecê-los exatamente como são, e podemos até prever a forma e a aparência da obra acabada, quando o construtor tiver terminado o seu trabalho. Sabemos que em algum lugar há um plano do arquiteto, um esquema; que há um propósito e um projeto detrás de cada golpe de martelo; que todo detalhe, por mais insignificante que pareça, tem o seu lugar.
A pequena bolota de carvalho que rompe o solo é uma predição do carvalho adulto. Onde quer que haja movimento ou mudança também há uma intenção, uma destinação, e um projeto de um arquiteto. A teosofia convida o homem comum a olhar as mudanças com o seu próprio caráter, a olhar para o elogio e a acusação da sua consciência, que traz felicidade e infelicidade, e a perguntar a si próprio qual é a intenção da natureza evolucionária em relação a ele; o que é que a natureza gostaria que ele fosse. Em outras palavras, qual é o plano do arquiteto em relação a esta casa humana inacabada. Seguramente não pode haver outra pergunta mais prática do que esta.
Assim que reconhecemos a existência de um plano e percebemos que nós próprios somos estruturas incompletas, fica claro de imediato que os limites de uma vida terrena são lamentavelmente inadequados para a sua finalização. E este projeto só pode ser completado na Terra, já que diz respeito principalmente à nossa relação com os nossos semelhantes. Nascemos com determinado caráter, ou seja, com certas tendências em nossa interação com os outros. À medida que vivemos nossas vidas, o caráter é gradualmente mudado pela experiência. Como a experiência é o único fator na mudança de caráter, é evidente que o caráter com o qual nascemos deve ter sido formado em algum momento por experiências do mesmo tipo que aquelas que o estão mudando agora. E já que é igualmente evidente que o nosso caráter ainda é uma estrutura inacabada, e está bastante distante do plano da natureza, o processo de acumulação de experiência deve continuar, prosseguindo sob condições semelhantes às do presente, isto é, pelo contato humano nas condições terrenas. E assim chegamos ao que pode ser considerado como o princípio teosófico mais importante, segundo o qual toda evolução tem uma destinação e avança na direção da sua meta através de um processo de reincorporação ou reencarnação que é governado pela lei ética da causa e do efeito: “O que um homem planta, isso ele colherá.” E nisso não há dogma, nem autoridade, nem revelação sobrenatural. É simplesmente uma dedução inegável, feita a partir de fatos óbvios.
Seria possível argumentar longamente em defesa das seguintes teses:
1) Há uma Vida Universal que permeia todos os reinos da natureza e nós mesmos somos expressões desta Vida Una, estando separados uns dos outros apenas pelas ilusões da personalidade egoísta.
2) A evolução ocorre através de constantes reincorporações ou reencarnações que são entretecidas pela lei da causa e do efeito. Esta lei assume um aspecto ético na evolução humana e produz em cada vida terrestre as circunstâncias que foram estabelecidas pelos pensamentos e ações das vidas que a precederam.
3) Todos os movimentos evolucionários são regulados por uma lei precisa e cíclica, e em nenhum lugar do universo ou do reino humano pode haver algo como acaso ou injustiça permanente.
Seria fácil mostrar que estes grandes postulados estão na base de todas as religiões conhecidas em algum momento no mundo, e que eles são confirmados tanto pela razão como pela experiência. Mas o objetivo no momento não é argumentar em relação a esses princípios; a meta é simplesmente afirmá-los, colocando-os para que sejam avaliados, e sugerindo o efeito que eles devem ter sobre a vida de quem os aceita como verdadeiros.
O efeito deve ser imenso e radical. Em primeiro lugar, estes postulados mudam toda a nossa concepção de tempo e, portanto, dos valores relativos dos eventos que se movimentam no tempo. Teremos alcançado uma avaliação nova e mais correta da importância das coisas, e portanto um ponto de vista desde o qual podemos observar sem preocupação a carga melancólica de ansiedades que agora afligem os nossos dias. Ao invés de imaginar que chegamos ao nascimento saindo de uma impenetrável escuridão, e que teremos como destino a escuridão, veremos a nós mesmos agora como seres que vivem desde sempre, que viverão para sempre, e nos quais a consciência nunca pode ser extinta, nem sequer por um momento.
A memória do cérebro pode ser incapaz de fazer a ponte entre os abismos de tempo, mas em algum lugar dentro do nível profundo do nosso ser, ou melhor, nos seus pontos mais elevados, reconheceremos a existência de uma alma na qual estão guardadas todas as memórias do passado, todo o conhecimento e todo o poder; e nada nos afasta daquele brilho, exceto as limitações autoimpostas da personalidade e o amor do eu inferior. Na presença desta compreensão, que espaço pode haver para as ambições pequenas, a cobiça, os medos, e os sofrimentos que agora preenchem nossas vidas torturadas? Comparadas com aquela dimensão estupenda de tempo, todas estas coisas passam a ser insignificantes e são reconhecidas em seu verdadeiro valor. Elas parecem grandes apenas quando são vistas num contexto de algumas dezenas de anos; apenas quando nós as medimos pelo padrão de algumas décadas. Olhemos para elas desde o ponto de vista de uma eternidade consciente, e elas perderão para sempre o poder de ferir-nos. Aprendemos finalmente o verdadeiro valor dos acontecimentos, e somos elevados por aquela nova sabedoria que está além do alcance da dor pessoal. Deixamos de ser crianças que choram por causa de brinquedos quebrados.
Mas a filosofia teosófica faz mais do que isso. A luz da lei nos eleva definitivamente para um lugar acima do território em que atua o medo, porque passamos a saber que um acaso cruel e indiferente não faz parte do nosso destino, e não encontra espaço nele. Somos mestres do nosso destino e capitães da nossa alma.
E como é lamentável, e abjeto, o modo como nós agora nos humilhamos diante dos nossos medos. Temos receio da pobreza, da morte e da doença. Vemos a nós mesmos como cidadelas fortificadas, sofrendo a ameaça de uma natureza hostil e impiedosa. Sentimentos de terror esperam por nós nos lugares escuros da vida, e em cada canto vemos um inimigo. Uma paralisia perpétua, resultado do medo, destrói a nossa força e esconde a luz do sol com suas sombras perniciosas.
E como isso tudo é desnecessário! Avançamos com uma nova confiança, à luz de uma lei que tem compaixão porque é justa; que revela a sua presença nos menores acontecimentos de nossas vidas; que mantém o universo dentro do seu campo de ação de modo a beneficiar a alma humana, e desperta prazer e dor com o propósito de assinalar o caminho para a felicidade.
Esta não é uma filosofia para os eleitos. Não exige grande erudição para ser compreendida. Não deve coisa alguma a qualquer autoridade ou revelação. Está dirigida a cada ser humano capaz de observar os fatos da sua própria vida e de dar um passo à frente, desde o que já foi visto para o que ainda não foi visto.
Estaremos com medo de que a adoção de uma filosofia espiritual prejudique o que chamamos de “sucesso na vida”? Seria estranho se a ignorância fosse mais proveitosa que o conhecimento, e se a fraqueza trouxesse mais vantagens que a força.
O maior de todos os êxitos na vida está reservado para aqueles que sabem o que é a vida e conhecem a sua origem, seu propósito, suas leis e seu destino.
A força necessária para o trabalho é obtida por quem se torna um aliado da natureza, e não por aqueles que resistem contra ela. A força é obtida por aqueles que obedecem às leis naturais, e não por quem as desobedece.
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O artigo acima foi publicado inicialmente em inglês em março de 1913 pela revista “Theosophy”, de Los Angeles, pp. 169-173. Título original: “To the Man in the Street”. Uma análise de seu conteúdo indica que foi escrito por John Garrigues (1868-1944).
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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
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