Como Abandonar a Distorção da Verdade?
Carlos Cardoso Aveline
Arthur Schopenhauer (1788-1860)
Quando alguém ingressa em um grupo teosófico, holístico ou ecológico, há sempre um convite à elevação da sua consciência em todas as situações da vida. Mas o eu inferior não entrega facilmente o poder às energias sutis e altruístas. Ele vai à luta através do boicote, consciente ou inconsciente. À medida que surgem inevitavelmente os testes e as dificuldades no caminho, as tentações do orgulho, da maledicência, do pessimismo e da distorção dos fatos colocam em cheque a determinação de permanecer sendo sincero. O perigo é ao mesmo tempo individual e coletivo. Instituições e movimentos de metas nobres e belos ideais podem cair na hipocrisia, se não houver vigilância.
De fato, um dos paradoxos da vida moderna é o uso da lisonja e do ataque pessoal como instrumentos de poder político, em sociedades cujas bandeiras são espiritualistas e humanitárias, e que giram em torno da ideia da fraternidade universal.
Esse desafio merece atenção porque um fracasso em relação a ele tem graves consequências. O uso de engano e manipulações mentais torna muito mais difícil – e em alguns casos impossível – o contato de alguém com sua própria alma imortal, ou o contato coerente de um movimento sem fins lucrativos com suas próprias metas nobres.
A astúcia personalista anula a possibilidade de uma verdadeira inteligência. Esta última, do ponto de vista da sabedoria clássica, é sempre uma função da alma imortal. O egoísmo pode produzir uma espécie sofisticada de astúcia, talvez até embelezada por uma pose espiritual -; mas isso não é inteligência.
Vejamos, então, como pode funcionar uma fonte de sofrimento cujo mecanismo é em boa parte semiconsciente: a Distorção da Verdade.
O filósofo Arthur Schopenhauer, cujo ponto de vista tem muito em comum com a filosofia esotérica, escreveu um tratado mostrando de que modos uma pessoa astuciosa pode vencer uma discussão mesmo sem ter razão. Schopenhauer enumera 38 maneiras de argumentar desonestamente. Sua meta não é ensinar alguém a mentir, mas abrir os olhos de quem é vítima da mentira para que aprenda a não deixar-se iludir por espertalhões.
Entre os estratagemas examinados por Schopenhauer estão a exageração do que o adversário disse, a tática de encolerizar o adversário, a manipulação de palavras, distorcendo seus significados, a mudança intencional de assunto, e a tática de rotular de modo simplista o pensamento de quem pensa diferente de nós.
O último recurso – a ser usado quando não há mais nada a fazer – consiste em ofender e desqualificar a pessoa do adversário. Quando os raciocínios falsos não funcionam, o hipócrita boicota todo e qualquer tipo de raciocínio. Então seu argumento é que as ideias do adversário não devem sequer ser levadas em conta simplesmente “porque vêm do adversário”. A ofensa pessoal aproveita a lei do menor esforço na tentativa de sugerir que não é necessário pensar. “Se você não tem argumentos, ataque a pessoa”, diz o velho ditado.
Schopenhauer escreve:
“Quando percebemos que o adversário é superior e que acabará por não nos dar razão, então nos tornamos pessoalmente ofensivos, insultuosos, grosseiros. O uso das ofensas pessoais consiste em sair do objeto da discussão (já que a partida está perdida) e passar ao contendor, atacando, de uma maneira ou de outra, a sua pessoa. Isto poderia chamar-se argumentum ad personam, para distingui-lo do argumentum ad hominem. Este se afasta do objeto propriamente dito para dirigir-se àquilo que o adversário disse ou admitiu. Em troca, quando argumentamos ad personam, o objeto é deixado completamente de lado e concentramos o ataque na pessoa do adversário, e a objeção se torna insolente, maldosa, ultrajante, grosseira. É um apelo desde a força do espírito às do corpo, à animalidade. Esta regra é muito popular, pois todo mundo é capaz de aplicá-la e, por isto, é aplicada com frequência.” [1]
As pessoas que são arrastadas pela preguiça mental têm o hábito de transferir a seus líderes a função de pensar.
“Se fulano diz algo, é falso”, pensam elas, frequentemente de modo inconsciente. “Mas se ciclano diz alguma coisa, seguramente é verdadeiro”.
Até certo ponto, gente que não presta atenção na vida se relaciona menos com as outras pessoas do que com as imagens construídas a respeito das outras pessoas. Por isso muitos têm uma verdadeira obsessão com sua “imagem pessoal”.
É a existência desta superficialidade diante da vida que torna politicamente lucrativo o exercício dos falsos elogios, da calúnia e outras formas de manipulação de aparências, como instrumentos para obter ou manter posições de poder em determinado grupo ou comunidade. Se todos pensassem por si mesmos, o alpinismo social não teria tantas possibilidades, a calúnia não teria eficácia e ninguém seria condenado – nem idolatrado – por mero ouvir dizer.
A atitude crédula tem duas formas básicas, portanto.
A sua forma positiva consiste em acreditar cegamente em algo apenas porque alguém em quem acreditamos fez a afirmativa. A forma negativa consiste em desacreditar cegamente de algo, porque alguém, em quem não acreditamos, disse aquilo. O ceticismo é, pois, apenas uma forma negativa de credulidade.
O processo é, na verdade, emocional. A mente, muitas vezes intelectualizada e capaz de hábeis discursos espirituais, está a serviço de emoções pessoais e cegas, de apego e rejeição. As mentiras dos nossos amigos são automaticamente defendidas; mas as verdades daqueles de quem não gostamos são chamadas de mentiras sem necessidade de pensar duas vezes.
Aqueles que levantam a bandeira da veracidade não ficam impunes, mas são pesadamente castigados pelos mecanismos de sustentação da ignorância coletiva. H.P. Blavatsky e William Judge são dois entre muitos exemplos notáveis de líderes humanitários que foram e ainda são objeto de calúnia, aberta ou velada. Tais calúnias têm sido instrumentos eficientes para prejudicar, pelo menos em parte, a filosofia esotérica e o movimento teosófico.
A história de Jesus no Novo Testamento exemplifica bem o mesmo mecanismo. No entanto, o cristianismo transformado em processo político imperial nos dá inúmeros exemplos da punição de quem ergue uma verdade considerada “inconveniente”. Desde há vários séculos o Vaticano, ao ver que não tem argumentos racionais para enfrentar pensadores independentes, parte para o ataque pessoal, em muitos casos perseguindo, prendendo, torturando e matando em nome de Jesus Cristo aqueles que ousam pensar por si. Nos casos mais brandos, excomungando. Alguns poucos nomes entre dezenas de milhares de vítimas são Antônio Vieira, Martim Lutero, Galileu Galilei, Giordano Bruno e Alessandro Cagliostro.
A perseguição dos “hereges” é, pois, uma variante da técnica erística – abordada por Schopenhauer – de abandonar o tema em discussão e partir para o ataque pessoal sem fundamento lógico, mas com objetivos políticos normalmente inconfessáveis, que é necessário disfarçar.
Na contramão da lógica institucional, a Sabedoria Divina aponta para o alto. Ela busca a Verdade em si, independentemente do seu valor de uso para este ou aquele interesse de curto prazo, seja individual ou coletivo. A filosofia esotérica também condena expressamente o uso de acusações pessoais falsas, sejam feitas de modo velado ou aberto. O mesmo princípio é ensinado por Jesus no Novo Testamento, quando afirma que, para o hipócrita, o cisco no olho alheio chama mais atenção que a viga no seu próprio olho.
No entanto, deixar de lado a prática da calúnia como instrumento de poder não implica abandonar o nosso sentido crítico.
Para a boa convivência humana, a liberdade de pensar e de expressar o que pensamos é tão importante quanto o comportamento ético. Acusações fundamentadas devem ser feitas de modo responsável e analisadas com transparência. A verdade é que os erros e fracassos humanos devem ser reconhecidos, para que não se repitam indefinidamente.
Há um caminho do meio entre os dois extremos de cegueira. Um extremo é a credulidade positiva de acreditar em tudo o que os “líderes” dizem, só pelo fato de eles dizerem. O outro é a credulidade negativa de desacreditar de tudo o que alguém diz, só porque alguma estrutura de poder desqualifica ou persegue essa pessoa. O caminho do meio entre essas duas formas de cegueira é o caminho do bom senso, do equilíbrio e do pensamento independente. Sabedoria não é algo que se pode obter por um simples processo de ouvir dizer e acreditar mecanicamente. Pensar por si mesmo é algo de extrema importância, e Gautama Buddha ensinou:
“Não se deixem desorientar por afirmações, por tradição ou por ouvir dizer. Não se deixem desorientar pelo conhecimento das Coleções (de Escrituras), nem pela mera lógica e inferência, nem por avaliar razões, nem pela reflexão sobre alguma opinião e pela aprovação dela, nem porque algo é conveniente, nem porque aquele que o diz é seu professor. Mas quando vocês souberem por si mesmos: ‘Essas coisas não são boas, essas coisas são erradas, essas coisas são censuradas pelos que são inteligentes, essas coisas, quando praticadas e realizadas, levam à perda e ao sofrimento’ – então rejeitem-nas.” [2]
A concentração do debate no plano pessoal evita a percepção da filosofia. H.P.B. foi constantemente atacada, de modo injusto e no plano pessoal, desde a fundação do movimento teosófico até sua morte em 1891. Mas a injustiça das acusações contra ela ficou absolutamente clara quando, em 1986, a Sociedade de Pesquisa Psíquica de Londres, que havia “julgado” e “condenado” HPB um século antes, finalmente admitiu que as acusações eram fraudulentas, e HPB inocente.
Mesmo dentro do movimento teosófico havia incompreensão em relação à sra. Blavatsky. Um raja-iogue dos Himalaias deu o seguinte conselho à sua discípula Laura Holloway, que tinha uma tendência a aceitar o caminho fácil de fazer pequenas críticas pessoais contra H.P.B.:
“Trate, filha, de aprender uma lição através de quem quer que seja que ela possa estar sendo dada. ‘Até mesmo as pedras podem dar sermões’. Não seja demasiado ansiosa por ‘instruções’. Você sempre obterá o que necessita se o merecer, mas não mais do que merecer ou estiver apta a assimilar…”. [3]
A ilusão personalista pode levar tanto à obediência cega como à crítica cega em relação a esta ou aquela pessoa; e desse modo estudantes inicialmente sinceros muitas vezes deixam de buscar a verdade para cair na discussão e na rotulação de cascas externas e personalidades. Embora o sentido crítico seja de fundamental importância, ele não pode estar separado do respeito pela verdade dos fatos, nem do bom senso e do equilíbrio.
Talvez a melhor maneira de evitar a armadilha dupla da obediência irresponsável e da maledicência igualmente irresponsável seja refletir calma e profundamente, uma e outra vez, sobre essas palavras de Gautama Buddha:
“Deixe de fazer o mal; aprenda a fazer o bem; purifique seu próprio coração; este é o ensinamento dos Buddhas.” [4]
E o preceito budista é reforçado pelo místico cristão São João da Cruz:
“Aparta-te do mal, faze o bem e busca a paz.” [5]
É deste modo que o coração humano segue sua vocação natural e se transforma, gradualmente, em um templo de sabedoria.
Helena Blavatsky escreveu em “A Doutrina Secreta”:
“Só a sempre desconhecida e imperceptível Karana, a Causa Sem Causa que dá origem a todas as causas, merece ter o seu templo e altar no solo sagrado e jamais explorado do nosso coração – invisível, intangível, não-mencionada, exceto pela ‘voz pequena e suave’ da nossa consciência espiritual. Aqueles que adoram diante desde altar devem fazê-lo no silêncio e na solidão santificada das suas Almas, fazendo do seu próprio espírito o único mediador entre eles e o Espírito Universal, suas boas ações, os únicos sacerdotes, e suas intenções pecaminosas as únicas vítimas sacrificiais visíveis e objetivas, ao homenagear a Presença.”[6]
NOTAS:
[1] “Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão (Dialética Erística)”, Arthur Schopenhauer, Introdução de Notas de Olavo de Carvalho, Topbooks, RJ, 1997, 258 pp., ver pp. 180-181.
[2] “The Wisdom of Buddhism”, edited by Christmas Humphreys, Curzon-Humanities, 1987, 280 pp., ver p. 71.
[3] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, editadas por C. Jinarajadasa, Editora Teosófica, Brasília, ver p. 147.
[4] “The Wisdom of Buddhism”, obra citada, p. 42.
[5] “São João da Cruz, Obras Completas”, Ed. Vozes, R.J., 1996, 1150 pp., ver p. 110.
[6] “The Secret Doctrine”, H.P. Blavatsky, Theosophy Company, Los Angeles, volume I, p. 280.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
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O grupo SerAtento oferece um estudo regular da teosofia clássica e intercultural ensinada por Helena Blavatsky (foto).
Para ingressar no SerAtento, visite a página do e-grupo em YahooGrupos e faça seu ingresso de lá mesmo. O link direto é este:
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