E Como Ela Pode Ajudar-nos a Viver Melhor
Carlos Cardoso Aveline
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Reproduzimos a seguir dois textos sobre a
mensagem e a vida de Mohandas Gandhi.
O segundo deles constitui o capítulo 21 da
obra “Conversas na Biblioteca – um diálogo de
25 séculos”, de Carlos Cardoso Aveline. Publicada pela
Edifurb, de Santa Catarina, em 2007, a obra tem 170 pp.
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1. Lições de Gandhi Para o Século 21
Na primeira metade do século 21, a sabedoria pacífica de “Mahatma” Gandhi é cada vez mais atual, e mais necessária.
Enquanto ouve falar sobre a vaga ideia de um desenvolvimento sustentável, o cidadão planetário assiste a uma crise ecológica global muito concreta e de proporções inéditas.
Se buscarmos, porém, pela chave-mestra que permite construir uma economia saudável, veremos que ela está no abandono do consumismo desinformado, e na adoção da boa e velha simplicidade voluntária ensinada por Mahatma Gandhi. Nisso, como em outras coisas, Gandhi coincidiu com os líderes das grandes religiões e filosofias de todos os tempos – inclusive Jesus, Buda, Pitágoras e Lao-tzu.
Inovador, Mohandas Gandhi questionava a civilização consumista. Ele escreveu:
“Duvido que a idade do aço seja um progresso em relação à idade da pedra talhada. Não tenho preferência nem por uma nem por outra. É à evolução da alma que devemos consagrar nossa inteligência e todas as nossas faculdades”.
E ainda:
“Os sistemas econômicos que negligenciaram fatores morais e sentimentais são como estátuas de cera: parecem vivas e no entanto falta a elas ser de carne e osso”. [1]
Ele pensava que o dinheiro não deve ser tratado como Deus, nem o ser humano como coisa. Sua religião era universal: admirava o hinduísmo, o cristianismo e o islamismo. Na luta pela independência da Índia, Gandhi criou o movimento Satyagraha, uma palavra composta que significa “firmeza na verdade”. Foi com base neste conceito que ele promoveu a grande luta contra a dominação inglesa.
Na Amazônia brasileira, o conceito de Satyagraha foi adaptado pelo seringueiro Chico Mendes, que promovia “empates” – confrontos não-violentos – para interromper a destruição da floresta. Tais lutas requerem autossacrifício, e não é por acaso que Chico Mendes foi, como Gandhi, morto com tiros à queima-roupa.
Gandhi escreveu: “Satyagraha não é outra coisa senão a austeridade necessária para buscar a verdade”. E acrescentou: “a verdade é dura como o diamante e frágil como a flor do pessegueiro”. Para ele, buscar a verdade era, de um lado, renunciar aos caminhos já trilhados; e de outro, ouvir a voz da própria consciência. Ele explicou: “O erro não se torna verdade porque se propaga e se multiplica; a verdade não se torna erro pelo fato de ninguém a conhecer.” [2]
Pouco antes da sua morte, Gandhi fez uma autocrítica severa. Reconheceu que errara ao dedicar mais energia à luta contra os ingleses do que a estimular a economia solidária. Depois do seu assassinato, um dos seus discípulos mais próximos, Vinoba Bhave, iniciou o movimento Gramdan (palavra composta que significa “doação às aldeias”).
Vinoba percorreu o país a partir de 1951. Em 1953, passou a receber de latifundiários doações para as comunidades de trabalhadores sem terra. Na província de Telangana (no atual estado de Andra Pradesh), Vinoba obteve cerca de 42 hectares de um grande proprietário. O bom exemplo foi seguido por muitos. Em 1965 os gram-dans, povoados com terras doadas, eram mais de 80 mil. Em todos os casos, as terras comuns eram administradas pela assembleia comunitária local. Entre as consequências benéficas do processo estavam o desaparecimento da criminalidade e a redução dos conflitos entre famílias.[3]
Qual a grande lição prática que o mundo do século 21 deve aprender da filosofia de Gandhi? Simples. O espírito comunitário, a economia solidária e a simplicidade voluntária são elementos centrais para o progresso e a democracia verdadeiros. Esta lição não é utópica nem impraticável. Consciente ou inconscientemente, os exemplos de Gandhi e Vinoba estão sendo seguidos. Desde os anos 1990 é costume, entre bilionários e milionários da Europa e dos EUA, doar em vida as suas fortunas para causas nobres. Bill Gates e sua esposa são um exemplo entre muitos.
Em todo o mundo, setores crescentes da sociedade optam por resgatar a vocação solidária do ser humano e por adotar em escala cada vez maior a simplicidade voluntária. Assim, a civilização solidária do futuro é construída sem pressa, sem pausa, e sem ruído desnecessário.
NOTAS:
[1] “Cartas ao Ashram”, Gandhi, Ed. Hemus, SP, 124 pp., ver p. 15.
[2] As diversas citações deste parágrafo estão em “Cartas ao Ashram”, obra citada, p. 86.
[3] Veja-se o folheto Vinoba, Um Seguidor de Gandhi, um texto de Devi Prasad editado pela revista Pensamento Ecológico em São Paulo em janeiro de 1983, 44 pp. O mesmo texto fora publicado no início dos anos 1970 na Argentina pela revista Problemas Humanos, Cuadernos Trimestrales, de Buenos Aires, em edição de 34 pp.
2. Gandhi e a Religião da Verdade
São raros os sábios que lideram pessoalmente transformações políticas e sociais. O indiano Mohandas Karamchand Gandhi foi uma dessas exceções – e o resultado duro e difícil dos seus esforços mostra como é lento o progresso da humanidade.
Nascido em Kathiavar no dia 2 de outubro de 1869, Gandhi ficaria conhecido na idade madura pelo nome de “Mahatma” (grande alma). Sob influência do escritor Leon Tolstoi, ele criou um método de mobilizações sociais não-violentas que não só possibilitou a independência do seu país em 1947, mas exerce ainda hoje uma influência sobre os movimentos sociais de todo o mundo.
Dono de uma coragem política extraordinária, Gandhi ignorava os jogos de cena e seguia a voz da sua consciência. Seu ideal era uma Índia independente, unificada, livre da miséria e da corrupção. Vendo-se derrotado no final da vida por tensões sociais e religiosas que não podia controlar, ele qualificou a divisão do seu país entre hindus e muçulmanos, em 1947, como uma “tragédia espiritual”. E confessou:
“Não concordo com o que os meus amigos mais próximos estão fazendo; 32 anos de trabalho chegam a um final sem glória.”
De fato, as lições gandhianas de tolerância filosófica e religiosa estavam sendo sistematicamente ignoradas. Ao chegar, a sonhada independência política levava a Índia a uma guerra civil.
Na tarde de 30 de janeiro de 1948, um angustiado Gandhi caminhava para suas orações, rodeado de amigos, quando um radical hindu, contrário à harmonia entre hinduísmo e islamismo, aproximou-se do líder, saudou-o solenemente, sacou um revólver e atirou. Gandhi apenas mencionou o nome de Deus e juntou as mãos como para uma prece, antes de cair. A ferida era mortal. Seu corpo deixou de respirar poucas horas depois.
O mundo ficou mais pobre sem Gandhi – mas as lições que ele deixou para a humanidade permanecem vivas e ainda inspiram milhões de pessoas. Fazem parte do seu ensinamento o pacifismo, a humildade, o desapego, o altruísmo, a simplicidade voluntária, a ajuda mútua, a ação comunitária e a democracia de base.
1) Qual a importância da Verdade, no caminho da sabedoria?
R: A palavra satya (verdade) vem de sat, que significa ser. Na realidade, não há nada, não existe nada a não ser a Verdade. É por isso que Satya ou Verdade talvez seja o nome mais importante para Deus. Com efeito, dizer que a Verdade é Deus é mais certo que dizer que Deus é a Verdade. (…) Onde está a Verdade está, também, o conhecimento que é verdadeiro. Onde não está a Verdade, não podemos encontrar o conhecimento verdadeiro. É por isso que associamos a palavra chit ou conhecimento à palavra que designa Deus. E onde se encontra o conhecimento verdadeiro há sempre a alegria (ananda), e não há lugar para a dor. Como a Verdade é eterna, também a alegria que dela deriva é eterna. É por isso que conhecemos Deus sob o nome de Sat-Chit-Ananda. É o que reúne em si a Verdade, o Conhecimento e a Alegria.
2) Para quem busca a sabedoria, qual é o objetivo da vida?
R: Somente a devoção a essa Verdade justifica nossa existência. A verdade deve ser o centro de toda nossa atividade. Ela deve ser o sopro da nossa vida. Quando o peregrino chega a essa etapa do caminho, ele descobre sem esforço as outras regras da vida e se amolda a elas instintivamente. Mas sem Verdade será impossível observar na existência algum princípio ou alguma regra. Crê-se, de forma geral, que para seguir a lei da Verdade é suficiente dizer a verdade. [Mas] devemos dar à palavra Satya um significado mais profundo. A Verdade deve manifestar-se em nossos pensamentos, em nossas palavras e em nossas ações. Para aquele que realiza a Verdade em toda sua plenitude nada mais resta a aprender, pois todo o conhecimento está necessariamente ligado à Verdade.
3) A ignorância espiritual faz com que as nossas verdades particulares fiquem rígidas, e disso surgem a intolerância e o ódio. O que é a Verdade, quando não há fanatismo?
R: O que é a Verdade? É uma questão difícil. Eu a resolvi para mim, dizendo que é aquilo que nos diz a voz interior. Mas, perguntarão, como fazer se pessoas diferentes concebem verdades diferentes e contraditórias? Já que o espírito humano trabalha com inúmeros meios e evolui em cada um de maneira diversa, segue-se que o que é verdade para um será erro para outro. Aqueles que fizeram experiências chegaram à conclusão de que necessitam de certas condições. Para fazer experiências científicas são indispensáveis certos conhecimentos científicos; assim, é necessário rigor para iniciarmos experiências no campo espiritual. Antes de ouvir sua voz interior, cada um deveria dar-se conta de suas próprias imperfeições. Temos, então, a convicção, que repousa na experiência, de que aqueles que procuram por si mesmos a Verdade como Deus devem fazer muitos votos, como o voto da verdade, o voto de brahmacharia ou pureza, o voto da não-violência, o voto de pobreza e de não-possessão. Se não nos impusermos tais votos, não poderemos iniciar a experiência. Outras condições são também necessárias mas não vou enumerá-las aqui. (…) A verdade é dura como o diamante e frágil como a flor do pêssego.
4) O que é não-violência?
R: A não-violência é meu primeiro artigo de fé. É também o último artigo de meu credo. A não-violência completa é a ausência completa de maus desejos com relação a tudo que vive. A não-violência, na forma ativa, é a boa vontade para tudo o que é vivo. É o amor perfeito.
5) Apesar das aparências, a não-violência nada tem a ver com covardia ou indiferença diante da injustiça…
R: Já é bastante nobre defender seu bem, sua honra e sua religião na ponta da espada. É mais nobre ainda defendê-las sem fazer mal ao malfeitor. Mas é vil, antinatural e desonroso abandonar seu posto e, para salvar a pele, deixar seu bem, sua honra e sua religião à mercê do malfeitor. Vejo que posso, com sucesso, pregar a não-violência àqueles que sabem morrer, mas não àqueles que têm medo da morte.
6) No Brasil, os programas de combate à fome têm sido de muita propaganda. Mas alguns alegam que o assistencialismo clientelista é ineficiente, e que o correto é gerar oportunidades de trabalho digno para todos, ao invés de apenas distribuir alimentos. A “esmola assistencial” destrói a autoestima do trabalhador?
R: Minha não-violência não permitiria dar uma refeição gratuita a um homem saudável, que não trabalha honestamente para ganhá-la. Se eu tivesse poder, suspenderia todo sadavrata (empreendimento de caridade) em que se dá alimentos em troca de nada. Tal hábito faz degenerar o povo; e, ter preguiça, ociosidade e hipocrisia, é um crime.
7) Qual a importância de fazer orações?
R: O objetivo da prece não é agradar a Deus, que não anseia por nossas preces e louvores; é purificar-nos. O processo de autopurificação consiste na percepção consciente de Sua presença em nós. Nada supera a força proporcionada por tal percepção. A presença de Deus deve ser sentida a cada passo da vida. Se pensarmos que ao sair do lugar do culto podemos viver e comportar-nos de qualquer modo, nossa participação nas orações terá sido inútil.
8) Qual a importância do diálogo entre as diferentes religiões?
R: O que se necessita nesse momento não é uma religião, mas respeito e tolerância entre os devotos de diferentes religiões. Devemos alcançar não a unidade da morte, mas a unidade na diversidade. Qualquer tentativa de eliminar tradições, ou os efeitos da hereditariedade, do clima e outras condições não só está condenada ao fracasso, mas é um sacrilégio. A alma das religiões é a mesma, mas ela está presa em uma multidão de formas. A alma persistirá até o final dos tempos. Os homens sábios ignoram a casca externa e veem a mesma alma viva sob uma variedade de crostas. (…) A Verdade não é propriedade exclusiva de nenhuma escritura.
Nota Bibliográfica:
As fontes das respostas acima são, respectivamente: 1) “Cartas ao Ashram”, de Gandhi, Hemus Editora, SP, 124 pp., ver pp. 25-26; 2) “Cartas ao Ashram”, obra citada, p. 26; 3) “Cartas…”, pp. 85-86; 4) “Cartas…”, pp. 90-91; 5) “Cartas…”, p. 97; 6) “Cartas…”, p. 110; 7) “A Roca e o Calmo Pensar”, de Mahatma Gandhi, Editora Palas Athena, SP, 1991, 249 pp., ver p. 32; 8) “The Message of Mahatma Gandhi”, Publications Division, Ministry of Information, Government of India, 1968, 136 pp., ver pp. 37-38.
As obras e escritos reunidos de Gandhi, publicados na Índia, somam dezenas de volumes. Sua autobiografia tem uma edição popular pela editora Penguin, de Londres: “An Autobiography, or the story of my experiments with Truth”, Penguin Books, London, 1982, 454 pp.
Gandhi escreveu uma versão da famosa obra clássica hindu Bhagavad Gita. A editora Ícone, de São Paulo, editou o “Bhagavad Gita” de Gandhi em 1992, com tradução de Norberto de Paula Lima, e 180 pp. A obra está esgotada. O “Bhagavad Gita” de Gandhi também foi publicado pela Editorial Kier, de Buenos Aires, em 1969, reimpressão em 1986, 182 pp., com o título de “El Bhagavad Gita de Acuerdo a Gandhi, Evangelio de la Acción Desinteresada”.
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