Como a Filosofia Elimina as Causas do Sofrimento
Carlos Cardoso Aveline
Pitágoras, visão parcial de gravura publicada na obra “The
Pythagorean Sourcebook and Library”, Compiled and Translated
by Kenneth Guthrie, Phanes Press, Michigan, EUA, 1987, 361 pp.
Pythagorean Sourcebook and Library”, Compiled and Translated
by Kenneth Guthrie, Phanes Press, Michigan, EUA, 1987, 361 pp.
Desânimo, preocupação, ansiedade? Experimente deixar de lado as inúmeras urgências que provocam o sofrimento do cidadão moderno. A filosofia é uma atividade prática. Respire fundo um instante, relaxe os músculos e decida pensar por alguns minutos em um assunto simples e eterno, o tema mais importante da vida: a felicidade humana.
Mesmo estando instalado no século 21, você pode dialogar, através da filosofia, com os principais pensadores da Grécia, de Roma e da Índia. Basta desligar um pouco a televisão e as preocupações da semana que passou. Parar um pouco não é perda de tempo. Felicidade é bom negócio: quem vive relaxado e de bem com a vida tem melhores chances de êxito em todas as áreas de atividade.
O filósofo não é alguém que fala coisas complicadas e que só ele entende. É um cidadão que vive de maneira simples. Ele dedica sua vida a compreender o mundo e a si mesmo, de modo a produzir paz interior e felicidade. A palavra “filósofo” significa apenas amigo da sabedoria. “Ser filósofo é o mesmo que ser bom”, escreveu Musônio Rufo no início da era cristã. Ele ainda disse: “a filosofia consiste em ocupar-se da perfeita honestidade e nada mais”[1].
É verdade que os filósofos não dão muita importância às coisas de curto prazo. Eles parecem ter quase todo o tempo do mundo à sua disposição, e raramente são escravos do hábito de olhar para o relógio de cinco em cinco minutos. Além de atuar nas situações do seu próprio tempo, as diferentes gerações de filósofos dialogam com bastante naturalidade entre si, mesmo separadas umas das outras por milênios. Um filósofo pitagórico diz algo no século 6 antes de Cristo e outro filósofo responde no mundo romano, nos primeiros séculos da nossa era. A polêmica tem outro momento importante nos séculos 18 ou 19, mas você pode participar dela no século 21 e também retomá-la em sua próxima encarnação, dentro de, digamos, uns 2000 anos.
A virtude é um dos temas centrais da filosofia. O pitagórico Theages afirmou: “a verdadeira virtude é o hábito de ficar dentro do que é adequado.” Musônio Rufo definia a questão como um processo científico-experimental: “a virtude é uma ciência não só teórica, mas também prática, assim como a medicina e a música”. Para a filosofia clássica, a virtude é a capacidade de viver corretamente, isto é, sem causar dor para si nem para os outros. Nesta linha, o pitagórico Hipodamus concluiu: “A felicidade não pode durar sem virtude, e a virtude nasce primeiro em quem é racional”.
A doutrina de Pitágoras ensina que para viver a felicidade e a iluminação do espírito é necessário purificar a alma de toda paixão humana. A ideia está certa. Mas libertar a mente das ansiedades e preocupações em relação ao mundo externo é uma tarefa de longo prazo. “O homem não é nem feliz nem bom por natureza, mas é preciso disciplina e cuidados para alcançar bondade e felicidade”, escreveu o pitagórico Hipodamus [2]. “Para ser bom”, disse ele, “o homem deve ter virtude. Mas para ter felicidade, ele deve ter boa fortuna.”
O que significa a palavra “fortuna”, usada aqui por Hipodamus? Superficialmente, é apenas boa sorte. Mas, para a filosofia esotérica, “boa fortuna” significa bom carma. Quem parece ser protegido pela boa sorte está, na verdade, colhendo um carma positivo plantado antes, nesta existência ou em uma vida anterior. É sempre recomendável aproveitar a oportunidade atual, portanto, plantando mais bom carma agora, para ter o que colher no futuro.
Hipodamus deu ainda outro motivo para explicar por que nem todas as pessoas boas são felizes: “O homem bom que busca o mundo divino é feliz; mas o homem bom que busca coisas de natureza mortal é infeliz”. A importância prática desta ideia é enorme. Embora sejamos bons, sofreremos bastante se estivermos identificados com coisas passageiras. Mas, se possuirmos a sabedoria e o desapego necessários, poderemos conhecer uma felicidade duradoura. Isso nos leva a outro problema: administrar os momentos felizes requer talento, porque é fácil apegar-se cegamente à satisfação e destruir a fonte de felicidade. A chave para resolver o problema, segundo Hipodamus, está na humildade e na busca contínua de inspiração interior:
“O homem deve administrar as coisas terrenas agradáveis buscando a virtude, assim como o piloto de um barco navega nas águas observando as estrelas, mesmo quando o vento é favorável. Aquele que faz assim não só segue o ser sagrado, mas harmoniza o bem humano com o bem divino.”
Segundo Hipodamus, a felicidade individual é inseparável da felicidade coletiva: “Se não há harmonia e inspiração divina nos assuntos diários, as coisas belas não podem permanecer em uma condição excelente. Se não existe uma legislação justa na cidade, não é possível que o cidadão seja bom ou feliz. Se não houver saúde, não será possível que o pé ou a mão sejam fortes e saudáveis. (…) A harmonia, sem dúvida, é a virtude do mundo. A legislação justa é a virtude de uma cidade. Saúde e força são a virtude de um corpo. Nestas três coisas – o mundo, a cidade e o corpo – as partes vivem em função do todo e do Universo.”
Onde está o alicerce da nossa vida? Onde podemos apoiar-nos? O filósofo Estobeu registrou que “a riqueza é uma âncora sem firmeza; a glória tem ainda menos estabilidade, assim como o corpo físico ou o poder pessoal e as honras. A prudência, a generosidade e a força interior são as âncoras poderosas. Nenhuma tempestade pode sacudi-las.” De fato, podemos evitar bastante sofrimento aprendendo a construir nossa vida sobre a base firme da verdade, e não sobre coisas efêmeras.
Para os filósofos clássicos, cada ser humano é autor e diretor de sua própria vida. Ele deve construí-la como quem faz uma obra de arte. “Assim como numa estátua, todas as partes de uma vida devem ser bonitas”, ensinou Estobeu. É melhor avançar pela vida e ganhar experiência de modo integral e equilibrado. Todos os aspectos do nosso ser devem participar da aprendizagem: deste modo, os pontos fracos são gradualmente reduzidos e eliminados.
“Quem é escravo das suas paixões não pode atingir a liberdade”, afirma o mesmo texto de Estobeu. Aqui o filósofo questiona as ideias superficiais sobre liberdade. Para ele, obedecer aos desejos animais não é liberdade. A verdadeira liberdade surge do ato de compreender os desejos exagerados como parte do ciclo da ignorância e da dor. Livre deles, o amigo da verdade vive moderadamente. Este equilíbrio interior traz felicidade. Traduzo mais quatro fragmentos preciosos de Estobeu sobre o uso da palavra, a ética e a pureza:
* “Fique em silêncio ou diga algo melhor que o silêncio. (…) Um conhecimento científico do mundo divino faz com que o homem use poucas palavras”.
* “Quando um homem sábio abre sua boca, a beleza da sua alma fica à mostra, como no caso das estátuas em um templo.”
* “Aqueles que não punem os maus gostariam de agredir os bons.”
* “Perceba o seu corpo como a roupa do seu espírito; e, portanto, mantenha-o puro”.
Junto com a pureza e a ética, uma das questões básicas da filosofia pitagórica é a da brevidade da vida. Quando o cidadão finalmente aceita este fato doloroso, ele encontra a paz. Hiparchus escreveu, em seu tratado sobre a tranquilidade:
“Já que os homens vivem durante um período muito breve, se sua vida é comparada com o tempo todo que existe, eles farão, digamos, uma viagem mais bonita se passarem pela vida com tranquilidade. Eles terão tranquilidade no mais alto grau se conhecerem cientificamente e com exatidão a si mesmos, isto é, se reconhecerem que são frágeis e mortais, que têm um corpo que pode adoecer e ser ferido facilmente, e que é ameaçado por muitas coisas seriamente prejudiciais até seu último momento de vida (…). Mas as doenças que atacam a alma são muito maiores e mais graves [que as doenças do corpo]. Porque toda conduta injusta, má, ilegal e perversa da vida do homem se origina das paixões da alma.”
Além de observar de que modo a ignorância espiritual produz sofrimento, é preciso colocar em movimento, de fato, a sabedoria em nossas vidas. Em seu Tratado Sobre o Homem Bom e Feliz, o pitagórico Architas escreveu:
“Dos bens, alguns são desejáveis em si mesmos, e não por causa de outras coisas; outros são desejados por causa de um segundo objetivo e não por seu próprio valor. Porém há alguns bens que são desejados tanto por seu próprio valor quanto em função de outros objetivos. Qual é, vejamos, o bem desejável em si mesmo, e não em função de alguma outra coisa? Evidentemente, é a felicidade. Porque nós aspiramos outras coisas para alcançar a felicidade, mas não aspiramos à felicidade para alcançar outra coisa qualquer. E quais são os bens que nós desejamos em função de outra meta, e não por seu próprio valor? É evidente que são as coisas úteis, que permitem obter objetivos desejados, como trabalhos corporais e exercícios que criam bons hábitos no corpo, e também leitura, meditação e estudo, que são realizados em função da virtude e de coisas belas. Mas quais são as coisas desejadas por seu próprio valor, e também em função de outro objetivo? Estas são as virtudes, e os bons hábitos que vêm com elas; as decisões e ações deliberadas e conscientes, e tudo aquilo que acompanha o que é realmente belo.”
Os pitagóricos ensinam que o bem supremo é a justiça. Nada mais natural, porque justiça é apenas o nome ocidental da lei do Carma, que governa o universo e também cada uma das suas partes. Theages escreveu:
“A justiça é aquilo que separa todos os erros e todas as virtudes da alma. Justiça é uma certa ordem na combinação correta das partes da alma. É uma virtude perfeita e suprema, porque todas as coisas boas estão contidas nela, mas as outras qualidades positivas da alma não podem existir sem ela. Por isso a justiça tem grande força tanto entre os deuses como entre os homens. Esta virtude contém o laço pelo qual o todo e o universo são mantidos juntos, e pelo qual deuses e homens mantêm contato.”
Para Theages, “a virtude não está em eliminar os sentimentos da alma, mas em harmonizá-los. Porque a saúde, que é uma certa combinação das energias do corpo, não é alcançada com a eliminação do que é quente ou frio, úmido ou seco, mas sim com a combinação correta destes elementos. Assim também, na música, a beleza não consiste em eliminar o agudo e o grave, mas, quando eles são harmonizados, o acorde é produzido e a dissonância é eliminada. (…) Deste modo, quando a raiva e o desejo são harmonizados, os vícios e outras paixões são extirpados e a conduta é regenerada.” [3]
Não devemos, pois, buscar necessariamente a eliminação dos contrastes e das dificuldades nas situações concretas da nossa vida. Situações fáceis muitas vezes produzem grandes quantidades de preguiça, acomodação e rotina. Em compensação, as situações difíceis e os grandes desafios nos forçam a crescer.
As verdadeiras causas do conflito e da ansiedade é que devem ser eliminadas. As crises servem para alargar nosso horizonte. A incerteza do futuro nos faz acordar para a necessidade de compreender a vida eterna e redescobrir conscientemente a nossa vocação para o que é infinito.
NOTAS:
[1] Musônio Rufo em “Disertaciones, Fragmentos Menores”, Biblioteca Clásica Gredos, Editorial Gredos S. A., Madrid., 1995. Ver pp. 59, 85, 87.
[2] A seguir, em várias citações, traduzo trechos pitagóricos inéditos em português, incluídos em “Life of Pythagoras”, de Iamblichus (Jâmblico). A tradução do grego é de Thomas Taylor, em livro editado em Londres por John Watkins, 1926. Há uma excelente coletânea de material pitagórico publicada nos EUA sob o título “The Pythagorean Sourcebook and Library”, compilada por Kenneth Sylvan Guthrie, editada por Phanes Press, Michigan, em 1987, com 361 pp.
[3] “Life of Pythagoras”, Iamblichus, 1926, obra citada, p. 170.
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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
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