O Espírito Científico Propõe
Uma Religiosidade Livre de Igrejas
Uma Religiosidade Livre de Igrejas
Albert Einstein
Albert Einstein (1879-1955)
Todas as ações e todas as imaginações humanas têm em vista satisfazer as necessidades dos homens e trazer alívio às suas dores. Negar essa evidência é não compreender a vida do espírito e seu progresso. Porque experimentar e desejar são os impulsos primários do ser, antes mesmo de considerar a majestosa criação desejada.
Sendo assim, que sentimentos e condicionamentos levaram os homens a pensamentos religiosos, e os incitaram a crer, no sentido mais forte da palavra? Descubro logo que as raízes da ideia e da experiência religiosa são múltiplas. No homem primitivo, por exemplo, o temor suscita representações religiosas para atenuar a angústia da fome, o medo das feras, das doenças e da morte. Neste momento da história da vida, a compreensão das relações causais mostra-se limitada e o espírito humano tem de inventar seres mais ou menos à sua própria imagem. [1] Ele transfere para a vontade e o poder desses seres as experiências dolorosas e trágicas de seu destino. Ele acredita mesmo poder obter sentimentos propícios desses seres através da realização de ritos ou de sacrifícios. A memória das gerações passadas lhe faz crer no poder propiciatório do rito para alcançar as boas graças de seres que ele próprio criou.
A religião é vivida antes de tudo como angústia. Não é inventada, mas essencialmente estruturada pela casta sacerdotal, que cumpre o papel de intermediário entre seres temíveis e o povo, fundando assim a sua hegemonia. Com frequência o chefe, o monarca ou uma classe privilegiada, de acordo com os elementos de seu poder e para salvaguardar a soberania no mundo, se atribuem as funções sacerdotais. Ou então se estabelece uma comunidade de interesses entre a casta política dominante e a casta sacerdotal.
Os sentimentos sociais constituem a segunda causa dos fantasmas religiosos. Porque o pai, a mãe ou o chefe de imensos grupos humanos, todos enfim, são falíveis e mortais. Então a paixão pelo poder, pelo amor e pela forma externa impele a imaginar um conceito moral ou social de Deus. O Deus-Providência preside o destino, socorre, recompensa e castiga. Segundo a imaginação humana, esse Deus-Providência ama e favorece a tribo, a humanidade, a vida, consola na adversidade e no malogro, protege a alma dos mortos. É este o sentido da religião vivida de acordo com o conceito social ou moral de Deus. Nas Sagradas Escrituras do povo judeu, manifesta-se claramente a passagem de uma religião-angústia para uma religião-moral. As religiões de todos os povos civilizados, particularmente dos povos orientais, se manifestam como basicamente morais. O progresso de um grau ao outro constitui a vida dos povos. Por isto desconfiamos do preconceito que define as religiões primitivas como religiões de angústia e as religiões dos povos civilizados como morais. Todas as simbioses existem, mas a religião-moral predomina onde a vida social atinge um nível superior. Estes dois tipos de religião constroem uma ideia de Deus pela imaginação do homem.
Somente indivíduos particularmente profundos e comunidades particularmente sublimes se esforçam por ultrapassar esta experiência religiosa. Todos, no entanto, podem atingir a religião em um último grau, raramente acessível em sua pureza total. Dou a isto o nome de religiosidade cósmica, e não posso falar dela com facilidade, já que se trata de uma noção muito nova, e a ela não corresponde conceito algum de um Deus antropomórfico.
O ser experimenta o nada das aspirações e vontades humanas, e descobre a ordem e a perfeição, ali onde o mundo da natureza corresponde ao mundo do pensamento. A existência individual é vivida então como uma espécie de prisão, e o ser deseja vivenciar a totalidade do Ser como um conjunto perfeitamente inteligível. Notam-se exemplos dessa religião cósmica, nos primeiros momentos da sua evolução, em alguns salmos de Davi ou em alguns profetas. Em grau infinitamente mais elevado, o budismo organiza os dados do cosmos, que os maravilhosos textos de Schopenhauer nos ensinaram a decifrar. Ora, os gênios religiosos de todos os tempos se distinguiram por essa religiosidade diante do cosmos. Ela não tem dogmas nem um Deus concebido à imagem do homem; portanto nenhuma Igreja ensina a religião cósmica. Temos também a impressão de que os hereges de todos os tempos da história humana se nutriam com esta forma superior de religião. Contudo, seus contemporâneos muitas vezes os consideravam suspeitos de ateísmo, e às vezes, também, de santidade. Encarados deste ponto de vista, homens como Demócrito, Francisco de Assis, Spinoza se assemelham profundamente.
Como poderá transmitir-se de homem a homem esta religiosidade, uma vez que ela não pode chegar a nenhum conceito determinado de Deus, a nenhuma teologia? Para mim, o papel mais importante da arte e da ciência consiste em despertar e manter desperto o sentimento dela naqueles que estão abertos para isso. Estamos começando a conceber a relação entre a ciência e a religião de um modo totalmente diferente da concepção clássica. A interpretação histórica considera ciência e religião adversários irreconciliáveis, por uma razão fácil de ser percebida. Aquele que está convencido de que a lei causal rege todo acontecimento não pode absolutamente encarar a ideia de um ser que intervém no processo cósmico, e ao mesmo tempo refletir seriamente sobre a hipótese da causalidade. Não pode encontrar um lugar para um Deus-angústia, nem mesmo para uma religião social ou moral: de modo algum pode conceber um Deus que recompensa e castiga, já que o homem age segundo leis rigorosas internas e externas, que lhe proíbem projetar a responsabilidade sobre a hipótese-Deus, do mesmo modo que um objeto inanimado é irresponsável por seus movimentos. Por este motivo, a ciência foi acusada de prejudicar a moral. Coisa absolutamente injustificável. E como o comportamento moral do homem se fundamenta eficazmente sobre a simpatia ou os compromissos sociais, de modo algum implica uma base religiosa. A condição dos homens seria lastimável se tivessem de ser domados pelo medo do castigo ou pela esperança de uma recompensa depois da morte.
É compreensível, portanto, que as Igrejas tenham, em todos os tempos, combatido a Ciência e perseguido os seus adeptos. Mas eu afirmo com todo o vigor que a religião cósmica é o móvel mais poderoso e mais generoso da pesquisa científica. Só aquele que pode avaliar os gigantescos esforços e, antes de tudo, a paixão, sem os quais as criações intelectuais e científicas inovadoras não existiriam, é capaz de pesar a força do sentimento único que cria um trabalho totalmente desligado da vida prática. Que confiança profunda na inteligibilidade da arquitetura do mundo, e que vontade de compreender, nem que seja uma parcela minúscula da inteligência que desvenda o mundo, devia animar Kepler e Newton, para que tenham podido explicar os mecanismos da mecânica celeste, através de um trabalho solitário de muitos anos?
Aquele que só conhece a pesquisa científica por seus efeitos práticos vê depressa demais e incompletamente a mentalidade de homens que, rodeados de contemporâneos céticos, indicaram caminhos aos indivíduos que pensavam como eles. Ora, eles estão dispersos no tempo e no espaço. Só aquele que devota sua vida à mesma finalidade possui uma imaginação que permite compreender estes homens, e aquilo que os anima, que lhes estimula a força necessária para conservar seu ideal apesar de inúmeros fracassos. A religiosidade cósmica é pródiga em tais forças. Um contemporâneo declarava, não sem razão, que, em nossa época, instalada no materialismo, reconhece-se nos sábios escrupulosamente honestos os únicos espíritos profundamente religiosos.
A Religiosidade da Pesquisa
O espírito científico, fortemente armado com seu método, não existe sem a religiosidade cósmica. Ela se distingue da crença das multidões ingênuas que consideram Deus um Ser de quem se espera benevolência e do qual se teme o castigo – uma espécie de sentimento exaltado da mesma natureza que os laços do filho com o pai -, um ser com quem também estabelecem relações pessoais, por respeitosas que sejam.
Mas o sábio, bem consciente da lei de causalidade que determina qualquer acontecimento, decifra o futuro e o passado, que estão submetidos às mesmas regras de necessidade e determinismo. A moral não lhe cria problemas com os deuses, mas simplesmente com os homens.
Sua religiosidade consiste em espantar-se e extasiar-se diante da harmonia das leis da natureza, as quais revelam uma inteligência tão superior que todos os pensamentos dos homens e todo o seu engenho não podem desvendar, diante dela, a não ser o seu nada irrisório. Este sentimento mostra a regra dominante de sua vida, de sua coragem, na medida em que supera a servidão dos desejos egoístas. Indubitavelmente, este sentimento se compara àquele que animou os espíritos criadores religiosos de todos os tempos.
NOTA:
[1] Sobre o fato de Deus ter sido inventado pelos homens à sua própria imagem a semelhança, H. P. Blavatsky escreveu em “A Doutrina Secreta”, obra que parece ter sido detalhadamente estudada por Albert Einstein: “Em sua infinita presunção e no orgulho e vaidade que lhes são inerentes, seres humanos criaram eles mesmos Deus com suas mãos sacrílegas, tendo como base o material que encontraram em suas próprias e reduzidas estruturas cerebrais; e o impuseram à humanidade como se fosse uma revelação vinda do ESPAÇO não-revelado.” (“A Doutrina Secreta”, Edição Original Online, publicação gradual, disponível em nossos websites associados, ver o Proêmio.) (CCA)
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O texto acima é reproduzido do boletim eletrônico “O Teosofista”, de dezembro de 2009. Ele faz parte da obra “Como Vejo o Mundo”, de Albert Einstein, Editora Nova Fronteira, RJ, 1981, 214 pp. Está nas pp. 19 a 24, sob os subtítulos “Religião e Ciência” e “A Religiosidade da Pesquisa”. Para maior clareza do texto, algumas palavras foram trocadas por sinônimos.
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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
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