Um Conto Sobre Liderança
Ética e Simplicidade Voluntária
Ética e Simplicidade Voluntária
Selma Lagerlöf
Selma Lagerlöf (1858-1940)
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Nota Editorial de 2016:
O conto a seguir é reproduzido da
obra “O Livro das Lendas”, de Selma
Lagerlöf, tradução de Pepita de Leão,
Edição Livros do Brasil, Lisboa, 1965-
1966, 207 pp. A ortografia é atualizada.
A autora mostra aqui que a simplicidade
voluntária possibilita ética, inspira um otimismo
realista, e abre espaço para a preservação dos
recursos naturais. Por outro lado, a adoração de
dinheiro e riquezas materiais leva à decadência
moral, à destruição do meio ambiente e a um
forte aumento dos sofrimentos da população.
A lenda descreve ações de um verdadeiro rei
ou estadista, assim como de um líder espiritual
correto. Nos dois casos, o dirigente respeita as
decisões da comunidade local. Um líder bem
informado não perde contato com sua consciência
e seu eu superior, mas antes o expande e, portanto,
coloca os interesses do povo acima da sua carreira
pessoal. Ele faz boas ações que não serão conhecidas
do público mas permanecerão ocultas, integrando
invisivelmente o seu bom patrimônio cármico.
A escritora sueca Selma Lagerlöf
recebeu o prêmio Nobel de literatura em 1909.
(Carlos Cardoso Aveline)
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Viajava o rei Gustavo III pela Dalecárlia. O tempo urgia e ele queria ir constantemente a toda a brida. Era tal a velocidade que os cavalos pareciam apenas rédeas estendidas na estrada e a carruagem apenas rodava pelo leito sobre duas rodas. E, mesmo assim, o rei passava a cabeça pela portinhola para gritar ao cocheiro:
– Porque nos arrastas assim? Julgas que levas um carregamento de cascas de ovos?
Andando assim, naquela correria, seria um milagre que o carro e os arreios aguentassem. Aliás, foi o que sucedeu: junto de uma ladeira íngreme, a lança partiu-se e o rei ficou impossibilitado de continuar. Os gentis-homens do séquito saltaram lestamente do carro e começaram a invetivar o cocheiro, o que, evidentemente, de nada serviu para consertar a lança partida. Era absolutamente impossível prosseguir viagem antes de reparar a carruagem.
Os cortesãos passeavam os olhos pelos arredores, em busca de alguma coisa que pudesse distrair o rei enquanto esperava, e viram ao longe um campanário que emergia de um tufo de árvores. Propuseram ao rei que tomasse um dos carros da comitiva, o qual o levaria até à igreja. Era domingo e poderia ouvir missa, passando assim o tempo até que estivesse pronto o grande coche real.
O rei aceitou e dirigiu-se para a igreja. Há longas horas que não via senão vastas florestas negras, mas aqui a paisagem tomava um aspecto mais alegre: entre aldeias e campos muito extensos, o Dalelf corria as suas águas claras e esplêndidas, ladeado por inúmeros álamos.
Mas o rei não teve sorte. Justamente no momento em que descia do carro na praça da igreja, ouviu o chantre entoar o salmo da saída e imediatamente os fiéis começaram a retirar-se. Vendo-os passar, o monarca parou com um pé dentro do carro e outro no estribo, assim ficando imóvel, fascinado pelo espetáculo. Nunca vira gente com tão bela aparência. Os homens, todos acima da estatura média, tinham rostos graves e inteligentes, enquanto as mulheres avançavam dignas e majestosas como se refletissem no aspecto a paz dominical.
Durante todo o dia o rei falara da desolação da região que atravessava e não cessara de repetir aos do seu séquito:
– Atravesso, sem dúvida nenhuma, o recanto mais miserável do meu reino.
Mas agora, que via os habitantes vestidos com o belo trajo nacional, esquecia-se completamente da sua pobreza. Pelo contrário, sentia reanimar-se-lhe o coração e disse consigo: “O rei da Suécia não está em tão má situação como supõem os seus inimigos. Enquanto os meus súditos conservarem este aspecto, estarei em condições de defender o meu trono e o meu país.”
Por sua ordem, os cortesãos anunciaram aos transeuntes que o estrangeiro que chegara e se encontrava diante deles era o seu rei, fazendo-os agrupar em redor dele para que pudesse falar-lhes.
E assim fez o rei um discurso ao povo. Falou do cimo da escada que conduz à sacristia, e ainda hoje lá se vê o estreito degrau sobre o qual se manteve.
Começou por expor o mau estado dos negócios do país. Disse que os suecos tinham sido assaltados ao mesmo tempo pelos russos e pelos dinamarqueses. Noutras circunstâncias, isso não seria muito perigoso, mas na hora atual o exército estava de tal maneira invadido por traidores que não ousava confiar nele. Por isso, não lhe restara outro recurso senão percorrer pessoalmente o país para perguntar aos seus súditos se queriam juntar-se aos traidores ou antes ficarem fiéis ao rei e fornecer-lhe auxílio em homens e dinheiro para que pudesse salvar a pátria.
Enquanto durou o discurso do rei, os camponeses conservaram-se em silêncio, e mesmo quando ele acabou não deram qualquer sinal de aprovação ou de desaprovação.
O próprio rei achou que fora muito eloquente e enquanto falava subiram-lhe muitas vezes as lágrimas aos olhos. Mas, como os camponeses persistiam naquela postura hesitante e constrangida, sem se decidirem a responder, franziu os sobrolhos e mostrou-se descontente.
Os camponeses compreenderam que o rei começava a achar muita demora, até que finalmente um deles, saindo da multidão, adiantou-se e disse:
– Devo dizer-te, rei Gustavo, que hoje não esperávamos uma visita real, Por isso, não estamos preparados para te responder imediatamente. Assim, aconselho-te que entres na sacristia para conversares com o nosso pastor, enquanto deliberamos sobre as coisas com que nos surpreendeste.
O rei percebeu que naquele momento nada mais conseguiria deles e achou prudente seguir o conselho do camponês.
Ao entrar na sacristia, não viu ali senão um indivíduo com o aspecto de um velho camponês. Era alto e forte, as mãos grossas e estragadas pelo trabalho. Não trazia casaco nem colarinho, mas calções de couro e um longo manto de burel branco, como os outros homens da região. Levantou-se e inclinou-se diante do rei que entrava.
– Julguei vir encontrar aqui o pastor.
O outro sentiu o rubor subir-lhe ao rosto. Vendo que o rei o tomava por um campônio, pareceu-lhe desagradável dizer que era ele o pastor da comuna.
– Sim, o pastor costuma estar aqui a esta hora.
O rei acomodou-se numa ampla poltrona de espaldar alto que se encontrava na sacristia, e que ainda hoje lá está da mesma maneira, com a única diferença de ter uma coroa real que a comuna depois mandou gravar no espaldar.
– Vocês têm aqui um bom pastor? – perguntou o rei, querendo mostrar que se interessava pelos assuntos do lugar.
Assim interpelado, pareceu ao pastor absolutamente impossível revelar quem era. “Mais vale deixar o rei pensar que sou um camponês”, disse consigo. E respondeu que o pastor não era muito mau: pregava a palavra de Deus de maneira clara e pura e procurava viver segundo os Seus mandamentos.
O rei achou que isto era um belo elogio, mas, como tinha o ouvido muito apurado, pareceu-lhe perceber uma certa hesitação na voz do interlocutor.
– No entanto, parece que aqui não estão completamente satisfeitos com ele.
– Na verdade, é um pouco arbitrário.
O pastor pensava consigo que, se o rei viesse a saber quem ele era, não lhe ficava bem apenas elogiar. Por isso entendeu fazer algumas censuras.
– Muitos dizem que o pastor quer resolver sozinho todos os problemas da comuna.
– Nesse caso, deve ter decidido e arranjado tudo da melhor maneira – disse o rei, descontente por ouvir o camponês queixar-se de um seu superior. – Parece-me que reinam aqui os bons costumes e a simplicidade dos bons tempos antigos.
– A gente daqui é muito honesta, mas também vive longe de tudo, no isolamento e na pobreza. Talvez fossem muito melhores que os outros se as tentações destes lhes chegassem mais perto.
– Felizmente, não há o perigo de que isso suceda – disse o rei, encolhendo os ombros.
Não voltou a falar, mas começou a tamborilar com os dedos sobre a mesa. Achou que já tinha trocado muitas palavras amáveis com aquele vilão e perguntava a si próprio, impacientemente, quando teriam os outros finalmente preparado a resposta.
“Os camponeses daqui não se apressam muito em correr em socorro do seu rei”, pensou. “Se tivesse a minha carruagem, já estaria longe deles e das suas deliberações.”
Entretanto o pastor agitava-se numa luta interior, pois tinha de tomar uma importante decisão. Agora regozijava-se por não ter dito ao rei quem era. Assim poderia falar-lhe de muitas coisas que, de outra maneira, não ousaria abordar.
Após uma pausa, rompeu de novo o silêncio para perguntar ao rei se era verdade que os inimigos iam cair-lhes em cima e que a pátria estava em perigo.
O rei pensou consigo que aquele rústico devia ter a delicadeza de não o aborrecer mais e encarou-o severamente, sem nada responder.
– Pergunto-o porque estava cá dentro e não podia ouvir bem as palavras. Mas se, na verdade, é assim, queria dizer que o pastor desta comuna talvez esteja em condições de obter todo o dinheiro de que o rei precisa.
– Pareceu-me ter ouvido há pouco que todos por aqui são pobres – disse o rei, julgando que aquele homem não sabia muito bem o que dizia.
– Sim, é verdade, e o pastor ainda possui menos que os outros. Se, porém, o rei quiser fazer a mercê de me escutar durante um momento, contar-lhe-ei como o pastor tem o poder de ajudá-lo.
– Fala! – disse o rei.
– Parece que tens menos dificuldade em soltar as palavras dos lábios que os teus amigos e vizinhos, os quais não conseguem formular a sua resposta.
– Não é muito fácil responder ao rei. Receio muito que tenha de ser o pastor a responder em nome dos outros.
O rei traçou a perna, afundou-se na poltrona, cruzou os braços e inclinou e cabeça sobre o peito.
– Agora podes começar – disse no tom de quem já dormia.
E o pastor começou:
– Era uma vez cinco homens desta comuna que caçavam juntos o alce na floresta, Um deles era o pastor de quem falamos, dois eram soldados e chamavam-se Olof e Erik Svard, o quarto era o estalajadeiro desta aldeia e o quinto um camponês de nome Israels Persson.
– Não vale a pena citar tantos nomes – murmurou o rei, deixando de novo pender a cabeça.
– Eram bons caçadores, sempre com sorte. Mas naquele dia tinham andado muito sem nada apanharem. Finalmente renunciaram a todas as buscas e sentaram-se no chão para conversarem. Diziam eles que em toda a floresta não havia um único lugar que conviesse à cultura. Por toda a parte só havia rochedos e pauis. “O Senhor não foi justo para conosco dando-nos uma região tão pobre para habitarmos”, disse um. “Noutros lugares, os homens podem ter toda a riqueza, ao passo que aqui, com todos os nossos esforços, mal chegamos a ganhar o pão quotidiano.”
O pastor interrompeu-se um momento, perguntando a si próprio se o rei estaria a ouvi-lo, mas este moveu um pouco o dedo mínimo para mostrar que ainda estava acordado.
– No momento em que os caçadores trocavam estas palavras, o pastor viu brilhar qualquer coisa na rocha, num sítio onde por acaso arrancara o musgo com um pé. “Que rocha tão estranha”, disse consigo, enquanto com outro pontapé levantava outro torrão. Depois retirou uma lasca de pedra que aderira ao torrão e que brilhava da mesma maneira que o resto da rocha. “Será possível que seja chumbo?” A estas palavras, os outros ergueram-se vivamente e começaram a arrancar o musgo com a coronha das espingardas. Ao fazerem isto, todos viram um filão de minério que atravessava o rochedo. “Que pensais que seja?”, perguntou o pastor. Então arrancaram novas lascas e morderam-nas com força. “Pelo menos, deve ser chumbo ou zinco”, foi a opinião deles. “E todo o rochedo está cheio disto”, acrescentou o estalajadeiro.
Ao chegar a este ponto da sua narrativa, o pastor viu que o rei erguia um pouco a cabeça e abria um dos olhos.
– Sabes se algum desses homens percebia de rochas ou de minerais?
– Não, nada sabiam disso.
A cabeça do rei tornou a pender e os dois olhos fecharam-se.
– Não só o pastor, como os que se encontravam com ele alegraram-se muito com o achado – continuou o narrador, a quem a indiferença do rei não perturbava. – Julgavam ter descoberto algo que os tornaria ricos, a eles e aos seus descendentes. “Nunca mais precisarei de trabalhar”, disse um. “E eu terei meios para passar a semana sem nada fazer e ao domingo irei à igreja num carro dourado.” Habitualmente, eram homens muito bons, mas a descoberta tinha-lhes dado volta à cabeça a ponto de falarem como crianças. Mas, mesmo assim, conservavam o sangue-frio necessário para deixarem tudo como estava, cobrindo o filão com torrões de musgo. Marcaram bem o lugar e voltaram para casa. Mas antes de se separarem resolveram, de comum acordo, que o pastor iria a Falun perguntar ao inspetor de minas que espécie de mineral era aquele que tinham encontrado. Devia regressar o mais depressa possível, e enquanto esperavam comprometeram-se mutuamente, por solene juramento, a não revelarem a nenhum ser humano o lugar onde o haviam descoberto.
O rei ergueu outra vez um pouco a cabeça, mas não voltou a interromper o narrador com uma única palavra. Começava finalmente a compreender que o outro tinha alguma coisa verdadeiramente importante para lhe dizer, pois não se deixava impressionar pela sua indiferença.
– Então o pastor pôs-se a caminho com algumas amostras do minério no bolso. A ideia de ficar rico alegrava-o tanto como aos outros e dizia no seu foro íntimo que bem depressa poderia reconstruir o presbitério, que, na verdade, parecia uma simples cabana, e depois casaria com a filha do deão, a quem amava muito. Sempre pensara que teria de esperar longos anos para poder desposá-la. Era pobre e obscuro e sabia que largos dias passariam antes que pudesse ter um cargo suficientemente remunerado para poder casar. Alcançou Falun em dois dias, mas passou o terceiro à espera do inspetor, que estava ausente. Finalmente, pôde vê-lo e mostrar-lhe os pedaços de minério. Então segurou-os na mão e olhou primeiro para as lascas e depois para o pastor. Este contou que os achara numa montanha da sua comuna e que queria saber se aquilo seria chumbo. “Não, não é chumbo”, disse o inspetor. “Então talvez seja zinco.” “Também não é zinco.” Pareceu ao pastor que toda a esperança se dissipava. Há muito tempo que não se sentia tão abatido. “Há muitos pedaços de pedra como esta na sua comuna?” “Temos uma montanha inteira cheia disto.” O inspetor então aproximou-se dele e bateu-lhe no ombro, dizendo: “Desejo que empregue isto de maneira que aproveite tanto a si como à pátria, pois é prata!” E começou e explicar-lhe como devia proceder para adquirir o direito legal sobre a mina, dando-lhe uma infinidade de bons conselhos. Mas o pastor ficara atordoado e nem sequer escutava o que ele dizia. Não fazia senão revolver na cabeça a ideia maravilhosa de que lá na sua pobre comuna havia uma montanha inteira de minério de prata que o esperava.
O rei ergueu tão subitamente a cabeça que o pastor calou-se.
– Suponho que quando o pastor regressou e foi trabalhar a mina verificou que o inspetor estivera a divertir-se com ele.
– Não, o inspetor não o enganara.
– Podes continuar – disse o rei, que tornou a recostar-se para escutar.
– Voltando finalmente à comuna, julgou que o seu primeiro dever era informar os companheiros de caça quanto ao valor do achado. Passando pela estalagem de Sten Stensson, resolveu entrar para lhe contar que o que tinham achado era prata. Porém, ao chegar à porta, viu que havia panos fúnebres nas janelas e que um largo trilho de lascas de pinheiro conduzia à escada. “Quem morreu aqui?”, perguntou a um rapazito que vagabundeava junto da sebe. “Foi o próprio estalajadeiro”, respondeu o rapaz, que contou ao pastor que há já uma semana ele se embriagava todos os dias. “Ah, quanta aguardente! Quanta aguardente correu!”, exclamou o garoto. “Mas como? O estalajadeiro nunca se embriagava!” “Agora bebia porque pretendia ter encontrado uma mina. Era tão rico, dizia, que nunca mais teria necessidade de fazer outra coisa senão beber. E ontem à noite, bêbado como estava, saiu de carro. O carro voltou-se e o estalajadeiro ficou morto debaixo dele.” O pastor continuou o seu caminho, muito triste com o que o rapaz lhe contara. Voltava tão feliz, regozijando-se com a ideia de comunicar a grande notícia…
Mal dera alguns passos, viu Israels Per Persson vir ao seu encontro. Trazia o mesmo aspecto de sempre e o pastor pensou que, felizmente, a riqueza não perturbara a cabeça daquele. Urgia fazê-lo feliz comunicando-lhe que desde aquele instante era um homem rico. “Bom dia! Voltas agora de Falun?” “Sim, e venho dizer-te que a coisa é muito melhor do que poderíamos imaginar. O inspetor de minas disse que o que encontramos é prata.” No mesmo instante, Per Persson ficou como se a terra se tivesse aberto diante dele. “Que dizes? Que dizes? Aquilo é prata?” “Sim, somos ricos, agora somos todos ricos e poderemos viver na abundância.” “É prata!”, repetiu Per Persson, que parecia ainda mais acabrunhado. “Mas evidentemente que é prata”, afirmou o pastor. “Certamente não pensas que queira enganar-te. Alegra-te sem receio!” “Alegrar-me, eu”, disse Per Persson. “Eu alegrar-me! Pensei que não tínhamos achado senão mica e, como preferia o certo ao duvidoso, acabo de vender a minha parte ao Olof Svard por cem coroas.” Estava desesperado e quando o pastor o deixou ficou a chorar na estrada. Uma vez em casa, mandou o criado comunicar a Olof Svard e ao irmão que o que tinham achado era prata. Estava cansado de levar ele mesmo a boa notícia. Quando, porém, à noite se encontrou a sós, a felicidade readquiriu os seus direitos. Saiu para a noite escura e subiu à colina onde pretendia construir o novo presbitério. Naturalmente que seria magnífico, tão magnífico como um bispado. Ficou fora durante muito tempo e não se contentou com reconstruir o presbitério: veio-lhe ao espírito a ideia de que, visto haver na comuna tanta riqueza, afluiria ali muita gente e por fim talvez se construísse uma cidade inteira em redor da mina. E então ver-se-ia obrigado a construir uma nova igreja no lugar da antiga. Grande parte da riqueza seria gasta nisso, mas não se deteve nesse pormenor, pois pensou que, depois de pronta a igreja, o rei e muitos bispos viriam consagrá-la. O rei ficaria satisfeito com a igreja, mas observaria que não havia alojamento digno de recebê-lo. E o pastor ver-se-ia forçado a construir um castelo na nova cidade.
Neste momento um gentil-homem abriu a porta para comunicar que o grande coche estava pronto. O movimento do rei foi para partir imediatamente, mas mudou de ideia.
– Ser-te-á permitido acabar a tua história. Mas é preciso que vás mais depressa. Já sei como o homem pensava e sonhava. Agora quero saber como procedeu.
– Quando o pastor estava no melhor dos seus sonhos, vieram dizer-lhe que Per Persson se suicidara por não ter podido suportar a ideia de ter vendido a mina. Sem dúvida dissera consigo mesmo que não poderia ver todos os dias os outros a gozarem a riqueza que podia ter sido sua.
O rei mudou de posição na poltrona. Agora tinha os olhos bem abertos.
– Na verdade, se eu fosse o pastor, já estaria farto dessa mina!
– O rei é um homem rico, tem tudo aquilo de que precisa. Mas tal não sucede com um pobre pastor, que nada possui. Vendo que a bênção de Deus não acompanhava a sua empresa, disse consigo: “Não pensarei mais em enriquecer e em honrar-me com estes tesouros, mas não poderei deixar a prata inútil no seio da terra. É preciso arrancá-la de lá para benefício dos pobres e dos miseráveis. Explorarei a mina para dar a abastança a toda a comuna.” E o pastor encaminhou-se para casa de Olof Svard, a fim de conversar com ele e com o irmão sobre o destino que deviam dar imediatamente à montanha de prata. Ao acercar-se da casa do soldado, encontrou um carro rodeado por camponeses armados. Sentado no carro, ia um homem com as mãos atadas atrás das costas e com os tornozelos amarrados com cordas.
Quando passou pelo pastor, o carro parou e então teve tempo de ver o prisioneiro. Tinha a cabeça tão cheia de ligaduras que não era fácil descobrir quem era, mas o pastor julgou reconhecer Olof Svard. Então ouviu o prisioneiro pedir aos que o vigiavam permissão para lhe dizer algumas palavras. Aproximou-se pois e, voltando-se, o prisioneiro disse-lhe: “Dentro em breve serás o único a saber onde se encontra a mina de prata.” “Que dizes, Olof?” “É que, vê tu, pastor, eu e meu irmão, desde que soubemos que era uma montanha de prata, não pudemos continuar tão amigos como éramos dantes e constantemente questionávamos. Ontem à noite disputámos para sabermos qual de nós cinco tinha visto primeiro a mina. E agora matei o meu irmão e ele feriu-me na cabeça. Serei enforcado e depois serás tu o único a conhecer o lugar da mina. Por isso, quero pedir-te uma coisa.” “Diz o que tens no coração. Farei por ti o que puder.” “Sabes que deixo muitos filhos”, começou o soldado. Mas o pastor interrompeu-o imediatamente: “Quanto a isso, podes ficar tranquilo. O que devia ser a tua parte na mina tocar-lhes-á como se fosses vivo.” “Não”, disse Olof Svard, “não era isso que queria pedir-te. Peço-te que não dês a nenhum deles a mínima coisa que provenha dessa mina!”
O pastor recuou um passo e depois parou, mudo de espanto. “Se não me prometeres isso, não poderei morrer tranquilo”, pediu o preso. “Sim”, disse lentamente e com grande esforço o pastor. “Prometo fazer o que me pedes.” Então levaram o assassino e o pastor ficou sozinho na estrada a pensar como iria cumprir a promessa feita ao soldado. Durante todo o regresso não pensou senão naquela riqueza que tanto o alegrara. Mas se agora se descobria que a gente da sua comuna não suportava a riqueza? Já vira morrer quatro deles, todos, antes disso, homens bons e altivos. Pareceu-lhe ver ali todos os seus paroquianos e afigurou-se-lhe que a mina de prata iria perdê-los um após outro. E ele, a quem incumbia velar pela alma daquela pobre gente, iria, pelo contrário, desencadear sobre ela o mal que havia de perdê-la?
O rei endireitou-se subitamente na poltrona e olhou fixamente para o seu interlocutor.
– Na verdade – disse -, na verdade compreendo que nestas regiões remotas o pastor tem de ser um homem fora do comum!
– Já não bastava o que sucedera – continuou o outro. À medida que a notícia da descoberta se espalhava entre os habitantes da comuna, estes deixavam de trabalhar para andarem a passear ociosos, à espera do dia em que devia cair sobre eles a grande riqueza. Acorreram aqui todos os vagabundos da região e dentro em breve só se ouvia falar de bebedeiras e de rixas sangrentas. Havia uma multidão que vivia a percorrer a floresta em todos os sentidos à procura da mina e o pastor notava que, logo que se afastava de casa, era espiado por pessoas que queriam surpreendê-lo no caminho da mina para lhe roubarem o segredo. Estavam as coisas neste ponto quando o pastor convocou os seus paroquianos para uma assembleia comunal. A princípio, recordou-lhes todas as desgraças que a descoberta da montanha de prata acarretara e perguntou-lhes se queriam a perdição ou se tinham empenho em salvar-se. Depois disse-lhes que não esperassem que ele contribuísse para a sua perdição. Estava agora resolvido a não revelar a ninguém onde encontrara a montanha de prata e ele próprio nunca dela tiraria qualquer proveito. E finalmente perguntou aos paroquianos que futuro desejavam: se escolhessem o de continuar na vã pesquisa da mina e esperarem uma riqueza que não viria, então iria para bastante longe, tão longe que nunca mais pudesse chegar-lhe aos ouvidos qualquer rumor a esse respeito. Mas se, enfim, queriam deixar de pensar na mina para voltarem a ser o que sempre haviam sido, então ficaria com eles. “Qualquer que seja, porém, a vossa escolha”, terminou o pastor; “recordai-vos de que da minha boca ninguém saberá jamais qualquer coisa acerca da montanha de prata!”
– E então qual foi a escolha dos camponeses?
– Foi a que o pastor desejava. Compreenderam que ele apenas queria o seu bem, pois ele próprio escolhia a pobreza por causa deles. E encarregaram-no de ir à floresta e esconder tão bem escondido o filão de minério sob as pedras e os ramos secos que jamais alguém pudesse encontrá-lo, nem eles nem os seus descendentes.
– E depois disso o pastor viveu aqui tão pobre como os outros?
– Sim, tem vivido aqui tão pobre como os outros.
– No entanto, deve ter casado e construído um novo presbitério.
– Não, não pôde casar e continua a morar na mesma velha cabana.
– É uma bela história a que me contaste – disse o rei, inclinando a cabeça.
O pastor ficou silencioso diante do rei. Mas alguns instantes depois este perguntou:
– Era na mina de prata que pensavas quando há pouco disseste que o pastor da comuna poderia fornecer todo o dinheiro de que preciso?
– Sim – respondeu o outro.
– Mas não posso pôr-lhe uma faca ao peito. E, de outro modo, como queres que obtenha de tal homem que me mostre o caminho da mina?
– Isso é outra coisa. Se é a pátria que tem necessidade do tesouro, então ele certamente cederá.
– Podes garanti-lo?
– Sim, posso garanti-lo.
– Então não te importas com a sorte que espera a gente da tua comuna?
– Que Deus a proteja!
O rei ergueu-se da poltrona e aproximou-se da janela, ficando um momento a olhar para a multidão que estava lá fora. Quanto mais olhava, mais os grandes olhos lhe brilhavam e todo o seu ser parecia crescer.
– Podes dizer da minha parte ao pastor desta comuna que não há visão mais bela aos olhos do rei da Suécia que a vista de gente como aquela. – Depois voltou-se para o pastor e começou a sorrir.
– Dar-se-á o caso de o pastor desta comuna ser tão pobre que logo que termina a missa tira as vestes negras para se vestir como um camponês?
– Sim, é tão pobre como isso – foi a resposta. E de novo o rubor lhe subiu ao rosto.
O rei foi outra vez à janela. Via-se bem que estava contentíssimo. Tudo o que nele havia de sentimentos nobres e generosos tinha sido despertado pelo que acabava de ouvir.
– Deves deixar essa mina em paz. Já que tens trabalhado e sofrido durante toda a vida para tornares a gente daqui tal como a desejas, deves conservá-la tal como está agora.
– Mas… se a pátria está em perigo…
– A pátria é mais bem servida por homens que pelo dinheiro – disse o rei.
Depois despediu-se do pastor e deixou a sacristia. Fora, a multidão estava tão silenciosa como quando a deixara. Mas, vendo o rei descer os degraus da escada, um camponês adiantou-se.
– Viste o nosso pastor?
– Sim, falei com ele.
– Então já tiveste a nossa resposta. Pedimos que fosses conversar com ele para que te respondesse por nós.
– Sim, obtive a resposta que queria.
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