Pomba Mundo
 
O Êxtase Espiritual Pode
Brotar do Auge do Sofrimento
 
 
Farias Brito
 
 
A Intensa Dor da Felicidade Suprema com mold
 
 
 
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Nota Editorial:
 
O pensador Jackson de Figueiredo perguntou em certa ocasião
ao filósofo cearense  Farias Brito (1862-1917)  qual  havia sido
o momento mais feliz da sua vida. O texto a seguir constitui a
resposta – profunda, franca  e paradoxal.  Visto do ponto de vista
da filosofia esotérica, o relato de Brito mostra o contraste entre a
vida do eu superior e a vida do eu inferior. Os processos de expansão
iniciática da consciência  ocorrem em situações em que o eu inferior
está sem defesas e exposto ao sofrimento. A cada restrição ou
“crucificação” da alma pessoal corresponde uma expansão ou
“ressurreição” da  alma espiritual. Em um momento de grande sofrimento
no plano das emoções, o foco de consciência pode elevar-se até a alma
imortal e provocar uma experiência de êxtase e felicidade sem igual.
Há, portanto, uma relação surpreendente entre a compreensão da dor e a
vivência da felicidade, e estes dois fatos podem ser simultâneos. O contraste
entre eles produz como terceiro elemento a transcendência – e a iluminação.
 
Intitulado originalmente “O Momento Mais Feliz de Minha Vida”, o
testemunho  de Farias Brito permaneceu inédito durante décadas após sua morte.
 
(Carlos Cardoso Aveline)
 
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Meu caro amigo: 
 
Se a pergunta que me faz fosse formulada de modo vago, indeterminado, nestes termos, por exemplo – quais os momentos mais felizes de sua vida? – não me seria possível responder. E isto porque os nossos momentos de felicidade, os meus, pelo menos, são em geral tão incertos, tão passageiros e instáveis, que apenas passam, são logo esquecidos. De certo tenho tido os meus momentos felizes. Todos os têm, ainda os mais desgraçados. Mas esses momentos são rápidos e passam quase sem deixar lembrança. São como leves murmúrios numa sinfonia em que predominam as notas fortes e ásperas. E o prazer e a dor em geral se misturam nas nossas sensações como o “oxigênio e o azoto no ar que respiramos, como a água e o álcool no vinho que bebemos”.
 
É o que faz ao mesmo tempo amarga e deliciosa a vida. Por tal modo que, por mais que nos seja trabalhosa a existência, em rigor não temos razão para queixas e lamentações, porque, não raro, é nos momentos em que mais sofremos que nascem as nossas melhores inspirações e as nossas mais altas esperanças, e em geral não sabemos distinguir onde termina a dor e onde começa a alegria. E não será a alegria, como pretendem alguns, um simples fato negativo, consistido unicamente no alívio que experimentamos pela cessação de uma dor?…
 
Todas as nossas alegrias são sempre misturadas de amargura.  “Sofres? És feliz?”  Quanta gente não poderá dar a mesma resposta a qualquer uma destas perguntas, duas vezes no mesmo dia? E quantos não se enganariam respondendo a qualquer delas com um  sim ou não?  É que nem sempre temos consciência clara do que nos sucede e não sabemos muitas vezes se o que nos aflige é um bem ou um mal. E é bem sabido que há dores que salvam, como há alegrias que matam. Demais: todas as nossas impressões se confundem na massa comum dos fatos de consciência. Tudo se vai aí escurecendo. E das dores mais violentas, como das alegrias mais intensas, não nos resta, depois de certo tempo, senão uma vaga lembrança que gradativamente se vai enfraquecendo, e por vezes de todo se apaga. É por isto talvez que vivemos sempre à cata de sensações novas…
 
Não lhe poderia, pois, eu dar notícia dos momentos felizes de minha existência. Já não os compreendo, já não os sinto, já não sei onde ficaram. São como tintas que se apagaram num quadro que a todo o instante se renova e sem cessar muda de fisionomia.
 
Todavia, como sua pergunta individualiza o caso e diz expressamente – qual o momento mais feliz -, é-me permitido responder com toda precisão, porque tenho realmente um momento que posso considerar o mais feliz de minha vida.
 
Devo observar que minha vida é extremamente simples. Nada tenho de notável. Sou verdadeiramente o que se pode chamar um homem sem história, porque nunca se passaram comigo coisas extraordinárias. Nunca ocupei posição saliente. Nunca exerci, nem pretendi exercer influência ou domínio sobre quem quer que seja. Nunca alcancei em coisa alguma vitórias ruidosas. Mas também nunca fui vencido. Nunca tive assim a impressão da vitória, nem a da derrota -, as duas coisas, ao que penso, que mais abalam. Tenho, além disto, vivido, como homem de pensamento, quase só. Deste modo nunca fui combatido, mas também nunca recebi nenhum estímulo. E sinto-me só, às vezes, quando ferve em torno de mim o tumulto e me cerca a multidão. Por isto sou triste. É que a tal ponto me acabrunha o sentimento da solidão que há ocasiões em que chego, por assim dizer, a perder a consciência de mim mesmo. Tenho, não obstante, nos momentos difíceis, uma resistência extraordinária. Neste ponto sinto que não sou comum. Parece-me até que a coragem cresce em mim quando as dificuldades aumentam. E quando o perigo chega ao último limite, já não me abala. Torno-me assim insensível a toda  desgraça, revelando-se-me, em certas ocasiões, no fundo do ser, energias que me surpreendem. É só o que percebo que existe em mim de excepcional. Tudo o mais é comum, tudo o mais é banal; como comuns e banais são as impressões que me causam os acontecimentos diários. Estas impressões passam e logo se apagam. E deixam-me sempre indiferente e frio. Mas esse momento que considero o mais feliz de minha vida deixou impressão funda que jamais poderá apagar-se. E – coisa singular! – esse momento foi o mais feliz e foi também o mais desgraçado de minha existência. Foi aquele em que mais sofri, ou, pelo menos, aquele em que sofri a minha mais terrível decepção ou desengano.
 
Não vem aqui a propósito entrar em detalhes. E pouco importa saber o que foi que sofri. Isto é secundário. Imagine o meu amigo alguém que foi condenado à morte e espera, impaciente e nervoso, o momento da execução; ou que se acha à beira de um precipício e vê escapar-se-lhe o único meio ou a única possibilidade de salvação: alguém, por exemplo, que é envolvido por um incêndio e vê invadida pelas chamas a única porta de saída. Pois foi uma coisa pior que tudo isto o que se passou comigo. Era uma situação desesperada, angustiosa, terrível…
 
Não se apoderou, entretanto, de mim, o desânimo. Pelo contrário: um poder estranho agitou-se em mim. E eu tudo poderia experimentar naquela ocasião, menos o sentimento do medo. E a necessidade que eu sentia era a de revolta.
 
A despeito de tudo, contive-me. Mas todo o meu ser se contorcia numa reação tremenda. Eu sentia uma como impressão de aniquilamento, como se tivesse sido estrangulado. Nesta situação tive febre. E veio como consequência da febre fortíssimo delírio. Pois bem: esse delírio foi exatamente o momento mais feliz de minha vida.
 
O que experimentei, o que eu via e sentia naquela situação excepcional, não é  possível descrever. Em primeiro lugar, naquele estado eu era inacessível a qualquer dor, como se tivesse passado por um processo de anestesia geral. Depois, nada me parecia impossível, como se eu tivesse feito a aquisição de novos e estranhos poderes, de novas e estranhas aptidões. Eu tinha a clara percepção das coisas, mas sem que ficasse isto sob a dependência de minha sensibilidade. Não é que eu tivesse perdido os meus sentidos: eu via e ouvia, eu tinha todas as sensações a que estamos sujeitos. Mas em mim, naquela ocasião, as sensações, quando as experimentava, eram já de natureza puramente ideal: o que quer dizer que me davam a percepção das coisas, mas sem me fazerem nada sofrer.
 
Tudo isto me dava um bem-estar, uma alegria tal que dela eu não poderia jamais fazer nenhuma ideia, senão sentindo-a. Minha inteligência, entretanto, tornou-se mais viva; mas isto em proporção que a mim mesmo causava espanto. Era uma coisa inexplicável. Cada ruído, cada som, cada movimento, o mais leve murmúrio, a mais leve agitação que se passava em torno de mim, era como uma linguagem que eu sabia interpretar e que me revelava o que há de mais oculto nas coisas. Fatos obscuros de minha própria vida que eu nunca soubera interpretar, apresentaram-se-me ali com a máxima clareza. E eu li no meu passado, como tive também a visão de fatos que depois se realizaram.
 
A alegria que experimentei foi tão grande que fiquei como louco. Eu dizia, por exemplo:
 
“Esta pedra fala”.
 
E a pedra, de fato, apesar de sua impenetrável mudez, estava falando para mim. [1]
 
As pessoas presentes (e eram todos amigos) tomaram-me efetivamente por louco. Eu o compreendi claramente e senti que tinham razão. Mas no fundo de minha consciência, eles é que se me apresentavam como loucos, porque não tinham nenhuma noção do que se passava e não poderiam compreender-me. E inspiravam-me a mais profunda piedade, como se fossem realmente loucos.
 
Este delírio durou uma noite inteira e só terminou quando começava a aparecer a luz do dia. Tal foi o momento mais feliz de minha vida. Foi também o mais cruel. E não desejo que se reproduza. E quando penso no que se passou comigo naquela noite, o sentimento que experimento, é ainda o de terror.
 
Tive a clara visão da morte. Esta se me afigurou o mais desejável dos bens e a suprema vitória. E realmente assim é. E se não pensamos assim, e em geral temos horror à morte, é porque não temos nenhuma noção de sua significação e destino; ao mesmo tempo que um instinto desconhecido, mas poderoso e invencível, nos impele a trabalhar com todo o esforço pela conservação da vida.
 
NOTA:
 
[1] Em “Cartas dos Mahatmas”, podemos ler o seguinte sobre a onipresença do espírito universal:  “Assim você verá que nesse dia, nesta terra atual, em cada mineral, etc., há um tal espírito. Direi mais. Cada grão de areia, cada pedra arredondada ou rochedo de granito é aquele espírito cristalizado ou petrificado.” (“Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”, Ed. Teosófica, Brasília, 2001, edição em dois volumes, ver volume I, p. 288.) Além disso, na obra “A Doutrina Secreta”, de H. P. Blavatsky, vemos este axioma cabalístico: “Uma pedra se torna uma planta; uma planta, um animal; um animal, um homem; um homem, um espírito; um espírito, um deus.” (“The Secret Doctrine”, Theosophy Co., Los Angeles, volume I, p. 197.)  Veja em nossos websites associados o artigo intitulado “As Encarnações de um Poema”.
 
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O texto acima foi reproduzido do volume “Inéditos e Dispersos – Notas e variações sobre assuntos diversos”, de Raimundo Farias Brito, Editorial Grijalbo Ltda, São Paulo, 1966,  Compilação de Carlos Lopes de Matos, 550 pp., ver pp. 86-90.  
 
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Veja mais textos de Farias Brito em nossos websites associados.
 
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Para conhecer a teosofia original desde o ângulo da vivência direta, leia o livro “Três Caminhos Para a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline.
 
Três_Caminhos_Auxiliar
 
Com 19 capítulos e 191 páginas, a obra foi publicada em 2002 pela Editora Teosófica de Brasília.   
 
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