Detetive Criado por Conan Doyle
Usa Elementos de Filosofia Esotérica
Usa Elementos de Filosofia Esotérica
Carlos Cardoso Aveline
Há mais de um século, Sherlock Holmes não envelhece. Alto, magro, nariz de águia, ele surgiu pela primeira vez em Londres em 1887 e habita até hoje a imaginação humana, desvendando mistérios, protegendo inocentes e derrotando criminosos. Ele também faz com que a antiga Londres do final do século 19 permaneça viva.
Com sua lupa e sua coleção de cachimbos, esse detetive imaginário parece ter uma vitalidade inesgotável. Sua capacidade de fazer deduções lógicas capta a atenção de milhões de pessoas. A cada ano os livros com suas aventuras ganham novas edições. De tempos em tempos são produzidos filmes, e mesmo no século 21 há muitos que mandam cartas para ele pelo correio, usando o tradicional endereço da rua Baker Street, 221-B.
Sua popularidade é tamanha que ele tornou-se um dos personagens mais marcantes da literatura de todos os tempos. Há algo, porém, que nem todos percebem: por trás da fachada misteriosa, Holmes possui uma visão espiritualista do mundo. Enquanto luta pelo bem e pela justiça, ele usa conhecimentos esotéricos. Seu criador, o escritor Conan Doyle, esteve interessado em assuntos místicos desde jovem, e a partir de 1916 decidiu dedicar sua vida integralmente à divulgação do espiritualismo e do espiritismo, “após 36 anos de estudos esotéricos”, conforme revela no seu livro de memórias.
Em determinado momento, Conan Doyle subestimou a força de Sherlock Holmes. Ele considerava as histórias policiais uma parte pouco importante da sua obra literária, e tentou abandoná-las. Cansado do seu personagem, decidido a escrever outro tipo de literatura, Doyle narrou em um conto a morte de Holmes: pretendia colocar um ponto final na série de aventuras. Mais tarde, a pressão do público e dos editores venceu a resistência do escritor. Doyle foi forçado a revelar que na verdade Holmes não morrera – e novas aventuras passaram a ser conhecidas.
As 72 histórias de Holmes revelam com certa clareza os dramas humanos do ciúme, da cobiça, da mentira e da violência. Cada aventura de Holmes é um episódio em que ele desvenda e destrói o jogo das ilusões – e às vezes das autoilusões. Mas o universo de Holmes não parou de crescer. Às histórias escritas por Conan Doyle, somaram-se depois outras tantas narrativas feitas por escritores posteriores, que “adotaram” o personagem imortal de Baker Street.
Sherlock é um investigador particular cujas áreas de interesse pessoal são extremamente variadas, e até paradoxais. É um bom boxeador e, mesmo assim, toca violino como poucos. Pratica uma luta japonesa chamada baritsu, mas passa noites em claro fazendo complexas experiências químicas no pequeno apartamento em que mora e trabalha. Seu colega de aventuras, o médico John H. Watson, descreveu em certa ocasião o seu ambiente de trabalho. Há uma mancha de ácido na mesa. “Numa estante, uma fileira de formidáveis cadernos de apontamentos e livros de referências que muitos cidadãos teriam prazer em queimar.” Há os diagramas, as poltronas, a caixa do violino, a prateleira dos cachimbos, a bolsa persa dos tabacos [1]. Não faltam livros, jornais e uma lareira. Ao lado mora a sra. Hudson, que limpa, cozinha, e atende a porta no apartamento de Holmes. O detetive lê textos antigos e religiosos. Nas cenas de abertura do conto “O Pincenê Dourado”, ele passa um dia imerso no exame atento, com lupa, do texto original de um palimpsesto do século XV.[2] Os palimpsestos eram pergaminhos cujos textos podiam ser apagados e reutilizados, mas não era impossível decifrar os textos originais que haviam sido raspados às vezes muito tempo antes.
Dono de um poder mental extraordinário, Holmes não perde tempo ou energia com coisas sem interesse. Seu comportamento externo é imprevisível. Ele não se prende ao mundo das aparências. O investigador é um mestre do disfarce e pode assumir tanto o aspecto externo de um cidadão típico de classe média como de um velho mendigo rabugento, para avançar com mais facilidade em suas investigações. O relato “Black Peter” revela que ele usa diversos nomes falsos e possui pelo menos cinco pequenos refúgios em Londres. Nesses locais, ele pode passar o tempo necessário encarnando uma das suas personalidades, até completar um trabalho qualquer.
É claro que Holmes enfrenta perigos a cada momento. Para ele, a capacidade de surpreender é uma questão de sobrevivência, mas esse fator não basta. Também é necessário ter capacidade de concentração, coragem, desapego, intuição, altruísmo e criatividade. Estas são características e qualidades de um estudante avançado da tradição esotérica, e Holmes parece havê-las tomado emprestadas do mundo psicológico de Conan Doyle. Vejamos sete exemplos:
1) O investigador fez uma peregrinação pela região mística dos Himalaias. Em “A Casa Vazia”, ele revela que ficou dois anos viajando pelo Tibete. Apresentava-se como um explorador norueguês cujo nome seria Sigerson. Sherlock Holmes conheceu a capital tibetana, Lhasa, e passou alguns dias visitando o próprio Dalai Lama. [3]
2) A sua capacidade incomum de concentração mental tem relação com a Raja Ioga e só pode ser resultado de um longo processo de autotreinamento.
3) O uso da telepatia e da intuição é bastante evidente na sua forma de trabalhar. O conto “As Faias Cor de Cobre” registra que, quando Holmes e Watson conversam, o detetive costuma responder mais aos pensamentos do que às palavras do seu auxiliar.
4) O investigador tem um desapego radical em relação a riquezas materiais. Watson escreve: “Como todos os artistas, Holmes ama a arte pela arte, e (…) raras vezes o vi reclamar grande recompensa pelos seus inestimáveis serviços. Tão desprendido – ou caprichoso – se mostra, que muitas vezes se recusa a ajudar os ricos e poderosos, dedicando semanas aos interesses de um cliente humilde, que lhe trouxe um caso cheio de características curiosas e surpreendentes, que apelam para a sua imaginação e lhe desafiam a argúcia.”[4]
5) Sherlock não busca fama. Prefere trabalhar anonimamente, deixando que os detetives da polícia convencional assumam a autoria da solução dos problemas. Em consequência, o detetive Lestrade, da Scotland Yard, sente por ele uma estranha mistura de inveja e gratidão.
6) É altruísta. A ética é o fator central para ele. Sherlock atua para defender os desesperados e proteger os que têm sua vida ameaçada, e geralmente consegue vencer os piores patifes. Suas histórias são cavalheirescas. Sua ação tem o objetivo de reeducar o criminoso para colocá-lo de volta no caminho do bem. Isso fica claro em muitos dos seus contos, inclusive “As Três Empenas” e “O Vampiro de Sussex” (uma história, aliás, em que não há vampiros).
7) Holmes busca seguir o princípio da não-violência. Ele enfrenta desarmado inúmeras situações de perigo, mas poucas vezes necessita agredir fisicamente um oponente. Quando deve prender alguém, Holmes pede apoio da polícia e arma uma cilada tão eficaz que o criminoso, colhido de surpresa, percebe a inutilidade de qualquer resistência. Então, graças à sua força mental, ele geralmente consegue impor ao criminoso uma conversa final sincera e honesta, que serve para encerrar o caso esclarecendo o episódio sem maus sentimentos.
O desapego e a prática da inofensividade (ahimsa) por parte de Holmes ficam claros no conto “A Ponte de Thor”. Ali, Watson afirma:
“Bem fazia eu de andar armado, porque ele pouco cuidava da sua segurança pessoal quando tinha o espírito absorvido por um problema, de modo que mais de uma vez o meu revólver nos havia prestado bons serviços.” [5]
A atitude de Holmes diante dos criminosos comprova que ele está livre de sentimentos de ódio. O detetive tem como regra pessoal deixar, quando possível, uma saída elegante a seus adversários. Porém só abre essa possibilidade depois que já decifrou completamente o enigma, previu todas as reações possíveis do seu adversário e possui um antídoto eficaz para cada uma delas. Vencedor, ele frequentemente deixa de lado a burocracia legal e faz acordos extrajudiciais. Em alguns casos os criminosos pagam indenizações informais às suas vítimas, como no caso de “As Três Empenas”. Nesse conto, aliás, ele faz a seguinte declaração de princípios:
“Eu não sou a lei, mas represento a justiça, até onde chegam os meus fracos poderes.”
Uma das técnicas tipicamente espirituais empregadas por Holmes é o jejum, que ele usa para aumentar seu poder de concentração e sua intuição. No episódio intitulado “A Pedra Mazarino”, a sra. Hudson pergunta a Holmes:
“Quando é que o senhor quer jantar?”
E ele responde:
“Depois de amanhã, às sete e meia”.
Pouco depois, ele dialoga com Watson:
“Espero que você não tenha aprendido a desprezar o meu cachimbo e o meu lamentável tabaco. Nos últimos dias, eles vêm substituindo para mim a comida.”
“Mas por que você não come?” – pergunta Watson.
“Porque as funções da mente se afinam quando a gente as deixa a pão e água. Como médico, meu caro Watson, você há de convir – o que a digestão ganha para abastecer o sangue, fica perdido para o cérebro. E eu sou cérebro, Watson. O resto de mim é um mero apêndice.”
A música é uma forma eficaz de pacificar a alma humana e de elevá-la até aquilo que está acima de todo pensamento. Para Holmes, tocar violino é uma forma de meditação. No momento em que o problema enfrentado parece mais difícil, ele se desliga de todas as coisas e passa longas horas dedicado à música. Nesses casos, à noite, o violino soa até madrugada. Essa técnica de elevação da consciência produz bons resultados: na manhã seguinte ele tem na cabeça a chave para a solução do problema.
Mas nem sempre o detetive descobre os enigmas enquanto visita “a terra dos violinos, onde tudo é doçura, delicadeza e harmonia”, conforme ele diz em “A Liga dos ‘Cabeças Vermelhas’ ” [6] . Em certas ocasiões, Holmes fica como em um torpor. Sua mente se concentra em um estado superior de consciência. No início do conto “O Homem que Andava de Rastos”, por exemplo, Watson recebe um telegrama irônico:
“Venha imediatamente, se não for incômodo. E se for, venha da mesma forma, S.H.”
Quando Watson chega a Baker Street, encontra Holmes encolhido em sua cadeira de braços, o cachimbo na boca e a testa enrugada. Watson relata:
“Com um aceno de mão, Sherlock indicou minha velha cadeira de braços, mas, fora isso, durante meia hora não deu qualquer indício de haver notado minha presença ali. Depois, com um estremecimento do corpo, pareceu despertar do seu devaneio e, com seu habitual sorriso excêntrico, deu-me as boas-vindas…. ”
Holmes acrescenta:
“Você me desculpará uma certa abstração de espírito. Fatos curiosos foram submetidos à minha apreciação nas últimas 24 horas…” [7]
O bom senso complementa a meditação abstrata. Na atividade policial, como na vida em geral, o cuidado e a eficiência no uso da informação são fatores decisivos. O investigador deve saber muito e falar pouco. Seu ponto de vista deve ser expresso apenas no momento certo. Mas o silêncio, característica central do método de Sherlock Holmes, é igualmente importante para a prática espiritual e a concentração da mente de qualquer estudante de filosofia. Embora confie em Watson, o detetive pouco ou nada diz ao seu leal amigo até alcançar a resposta final para o enigma que busca resolver. A filosofia esotérica afirma que há um motivo para o silêncio: o pensamento intuitivo é feito de uma matéria mental tão sutil que se quebra e contamina quando misturada com a matéria mais densa dos pensamentos de outras pessoas, por mais bem-intencionadas que elas sejam. A “voz do silêncio” só pode ser ouvida no templo do coração. Por isso há certas coisas que só nos atrevemos a falar verbalmente quando estão suficientemente maduras, e não antes. As pessoas atentas ou afinadas conosco talvez possam perceber nossos sentimentos sem necessidade de palavras.
Apesar das suas qualidades positivas, Holmes é humano e imperfeito. Nem sempre ele pode evitar que a tensão extrema enfrentada na profissão tenha efeitos negativos sobre sua maneira de viver, e Watson menciona em mais de uma oportunidade os seus momentos de queda e fracasso.
Um grande herói necessita de um grande cenário. A cidade em que Sherlock Holmes vive e trabalha é tão imortal como ele. O tempo não altera aquela velha Londres misteriosa, imersa em neblina, com suas ruas percorridas por belas carruagens. Um leitor atento talvez seja capaz de ouvir o ruído das patas dos cavalos. À noite, lampiões iluminam fracamente as ruas da cidade, que as descrições de Watson permitem a todo leitor enxergar com certa clareza. O próprio Holmes talvez possa ser encontrado pela imaginação em algum beco escuro, fazendo uma investigação secreta. Estará disfarçado como um vendedor de livros raros, ou revestido da condição de mendigo, para enganar um bando de ladrões que serão presos sem necessidade de violência.
Como personagem popular de histórias policiais, não se deveria esperar que Sherlock Holmes fosse um leitor assíduo das obras de Platão, de Plotino ou de Helena Blavatsky, ou um associado ativo da Loja Unida de Teosofistas. Conan Doyle não é um dos maiores pensadores da história da humanidade. Mas pode-se distinguir em Sherlock Holmes a marca de uma pessoa ética, que luta pelo bem e que desenvolveu consideravelmente os poderes altruístas de abstração, de concentração mental e de autossacrifício por um ideal de justiça.
NOTAS:
[1] “As Aventuras de Sherlock Holmes”, volume IV, “O Cão dos Baskervilles”, de Conan Doyle, Círculo do Livro, 300 pp., veja o conto A Casa Vazia, p. 170.
[2] “As Aventuras de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, volume V, “O Círculo Vermelho”, 342 pp., ver pp. 89-90.
[3] “As Aventuras de Sherlock Holmes”, volume IV, “O Cão dos Baskervilles”, obra citada, página 162.
[4] “As Aventuras de Sherlock Holmes”, volume IV, “O Cão dos Baskervilles”, obra citada, página 277.
[5] “Histórias de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, Edições Melhoramentos, SP, 276 pp., 1966, página 170.
[6] Sobre a “terra dos violinos”, veja “Aventuras de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, Edições Melhoramentos, SP, 290 pp., página 47.
[7] “Histórias de Sherlock Holmes”, Edições Melhoramentos, obra citada, pp. 175-176.
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Para Ler Mais:
* “Memórias e Aventuras”, autobiografia de Arthur Conan Doyle, ed. Marco Zero, SP, 327 pp.
* Todos os livros de Conan Doyle sobre o detetive, publicados no Brasil por várias editoras.
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Para conhecer um diálogo documentado com a sabedoria de grandes pensadores dos últimos 2500 anos, leia o livro “Conversas na Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.
Com 28 capítulos e 170 páginas, a obra foi publicada em 2007 pela editora da Universidade de Blumenau, Edifurb.
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