Um Jeito Misterioso de Falar em Silêncio
Carlos Cardoso Aveline
A leitura é uma forma de magia. Lendo, deixamos de lado as limitações da vida cotidiana, a nossa consciência se expande e podemos visitar lugares e tempos diferentes.
A boa leitura provoca experiências místicas e rompe os muros da mediocridade. Nos livros, impressos ou online, vivemos pessoalmente os acontecimentos mais inspiradores de todas as épocas. Conhecemos santos, reis e filósofos da antiguidade. Podemos saber o que disseram Jesus Cristo na Palestina e Gautama Buda no continente indiano. Revivemos guerras e revoluções e percebemos que o passado da humanidade é o mesmo da nossa alma.
Quando descobrimos a delícia de ler, nosso aprendizado na vida adquire proporções ilimitadas. Mas isso não é tudo. A palavra escrita também é um instrumento revolucionário. Ela desperta as consciências, revoluciona o espírito humano, derruba governos corruptos e provoca grandes transformações sociais. O escritor argentino Jorge Luis Borges escreveu:
“Dos instrumentos do homem, o livro é, sem dúvida, o mais assombroso. Os demais são extensões do corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões da sua vista; o telefone é extensão da sua voz; depois temos o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é extensão da memória e da imaginação.”
É claro que o ato de ler tem seus perigos. Há livros que nos libertam da ignorância, mas há leituras que são inúteis ou até prejudiciais. O bom gosto e o critério correto são armas indispensáveis na hora de escolher textos. E, feita a escolha, há maneiras certas e erradas de ler a obra preferida. Para Jorge Luis Borges, “colocar um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso como pôr uma espada nas mãos de uma criança.” Segundo ele, a função do livro “não é revelar-nos as coisas, mas, simplesmente, ajudar-nos a descobri-las”. [1] Assim, não devemos acreditar supersticiosamente em tudo que lemos. A palavra escrita é apenas um instrumento decisivo para que encontremos a verdade por nós mesmos.
O pensador chinês Lin Yutang escreveu:
“A leitura foi sempre contada entre os encantos da vida culta e é respeitada e invejada por aqueles que raramente ou nunca se concedem esse privilégio. (…) O homem que não tem o costume de ler está aprisionado num mundo imediato, em relação ao tempo e espaço. Sua vida cai numa rotina fixa: acha-se limitado ao contato e à conversa com alguns poucos amigos e conhecidos, e só vê o que acontece na vizinhança imediata. Mas quando toma em suas mãos um livro, penetra em um mundo diferente e, se o livro é bom, vê-se imediatamente em contato com um dos melhores conversadores do mundo.”
E Lin Yutang prosseguiu:
“A melhor leitura é a que nos leva a esse mundo contemplativo, e não a que se ocupa unicamente dos fatos. Considero que não se pode chamar leitura a essa tremenda quantidade de tempo que se perde com os jornais, pois os leitores de jornais se preocupam antes de tudo em obter notícias sobre fatos e acontecimentos.”
A leitura profunda é meditativa. Ela ocorre naturalmente, porque é movida pelo princípio do prazer e não por alguma exigência externa. “Todo aquele que lê um livro como quem cumpre uma obrigação” – lembra Lin Yutang – “faz isso porque não compreende a arte da leitura.”
Os textos têm sabores, assim como as comidas. E cada leitor tem o seu paladar próprio. “A forma mais correta de comer é, afinal de contas, comer o que nos agrada”, diz Yutang, “porque só então se poderá ter segurança da digestão. Quando se lê, como quando se come, o que faz bem a um pode matar o outro. O mestre não pode forçar seus alunos a gostarem do que agrada a ele como leitura, e um pai não pode esperar que os filhos tenham o mesmo gosto que ele. E se um leitor não tem prazer com o que lê, perde o seu tempo.”
Os nossos verdadeiros interesses intelectuais crescem de modo natural, como uma árvore que sabe buscar a luz e os nutrientes. Nossa vontade de ler flui como um rio. Quando há um obstáculo, a água o desvia e segue pelo caminho mais fácil. A curiosidade do leitor, como a água, avança pelo critério da afinidade.
“Considero o descobrimento do autor favorito de cada um como o momento definitivo da sua evolução espiritual”, explica Yutang. “Há algo que se chama afinidade de espíritos, e, entre os autores antigos e modernos, devemos procurar aquele cujo espírito é semelhante ao nosso. Só dessa maneira podemos tirar real proveito da leitura.”
As afinidades mais profundas da alma ultrapassam as barreiras de tempo e lugar. Lin Yutang destaca: “Há sábios que viveram em épocas diferentes, separados por muitos séculos, mas com maneiras de pensar e de sentir tão semelhantes que, ao se encontrarem nas páginas de um livro, pareciam uma única pessoa que encontrava a própria imagem.” [2]
Graças aos livros e à internet, podemos ter alguns dos maiores sábios da humanidade como amigos e conselheiros – e conviver com eles interiormente. Essa amizade sem fronteiras estabelece um contato vivo entre a consciência divina presente em nós e a consciência divina que há na alma dos bons autores.
Ao mesmo tempo, o livro que contém sabedoria é o melhor espelho do homem – um espelho em que se reflete nosso eu imortal, nosso potencial para o bem e nosso rosto espiritual. Diferentes leituras despertam distintos aspectos do ser humano.
O livro que traz sabedoria é sempre um instrumento que faz o espírito avançar em direção à luz, mas há várias maneiras de utilizá-lo. É possível ler rapidamente e sem compromisso, para obter uma ideia geral do que há na obra. Pode-se usar um livro como material de consulta e como recurso para pesquisas eventuais. E pode-se ler um livro em profundidade e meditativamente, testando em nossa vida diária as verdades que ele traz e renovando nossa experiência concreta com o material que ele contém.
Algumas leituras são exercícios de ioga e contemplação. Pouco antes de morrer, a escritora russa Helena Blavatsky disse que, ao ler sobre filosofia esotérica, o estudante deve manter presentes três ideias:
1) A primeira é a unidade fundamental de tudo o que existe. Essa unidade interior não nega, mas, ao contrário, alimenta e reforça a diversidade externa da vida.
2) A segunda ideia é que não há matéria morta ou inanimada no universo. Tudo está em movimento, tudo tem vida. A Lei Universal e a Inteligência Cósmica estão presentes no movimento de cada átomo.
3) A terceira ideia é que o homem é o microcosmo. Cada ser humano é uma miniatura do universo e está em relação dinâmica com todo ele. [3]
É possível manter estas três ideias em nossa consciência não só enquanto lemos um livro, mas em todos os momentos da vida. Olhar o mundo é a mesma coisa que ler a natureza. Podemos estar em contato consciente com o universo enquanto agimos nas situações concretas da vida. Sugerindo algo parecido, a brasileira Cecília Meireles escreveu em um dos seus poemas:
“Não sejas o de hoje. Não suspires por ontens… Não queiras ser o de amanhã. Faze-te sem limites no tempo. Vê a tua vida em todas as origens. Em todas as existências. Em todas as mortes. E sabe que serás assim para sempre. Não queiras marcar a tua passagem. Ela prossegue: é a passagem que se continua. É a tua eternidade… É a eternidade. És tu.” [4]
No outro extremo do mundo, ao abordar a leitura como um modo mágico de olhar a vida, um mestre zen-budista escreveu:
“Tudo que pode ser escrito em um livro, tudo que pode ser dito – tudo isso é pensamento. Se você está pensando, então todos os livros de Zen, todos os sutras budistas e todas as Bíblias são como palavras do demônio. Mas se você ler com uma mente que está livre de todo pensamento, então os livros de Zen, sutras e Bíblias são todos verdadeiros. Assim também são o latido de um cão ou o canto do galo; todas as coisas estão ensinando algo a você a cada momento, e esses sons são ensinamentos ainda melhores do que os livros de zen-budismo. O Zen existe quando se mantêm a mente livre do pensamento.” [5]
A leitura de um bom livro nos enriquece. Especialmente quando lemos sem pressa. É válido parar para pensar, e principalmente para interromper o pensamento. É importante, de tempos em tempos, suspender a leitura entre uma frase e outra e meditar deixando o olhar perdido em um ponto qualquer do espaço. É por isso que Jorge Luis Borges confessou:
“Creio que uma forma de felicidade é a leitura; outra forma de felicidade menor é a criação poética, ou o que chamamos de criação, que é uma mistura de esquecimento e de lembrança do que lemos antes. Emerson coincide com Montaigne no fato de que devemos ler unicamente o que nos agrada, que um livro tem que ser uma forma de felicidade.”
A mera presença de um bom livro em nossa casa pode irradiar uma misteriosa influência benigna. Já velho e cego, Borges contou o seguinte durante uma das suas palestras:
“Eu continuo brincando de não ser cego, continuo comprando livros, continuo enchendo minha casa de livros. Outro dia me deram de presente uma edição de 1966 da Enciclopédia de Brokhause. Eu senti a presença desse livro em minha casa, eu a senti como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver; e, no entanto, o livro estava ali. Eu sentia como uma gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das formas possíveis de felicidade que os homens possuem.”[6]
Escrever é um jeito misterioso de falar em silêncio. Por outro lado, ler é uma maneira sutil de ouvir o que não tem som. Quando alguém não consegue ler um texto com atenção plena, a razão disso é a sua incapacidade de ouvir em um nível mais profundo.
Para fugir do “barulho” das suas emoções ansiosas, o cidadão moderno costuma apelar para o rádio, a televisão, a conversa fiada ou a música ruidosa. Só quando confronta o vazio e a solidão ele tem acesso ao acompanhamento mágico e completo que surge durante a leitura atenta de um bom texto.
Então não importa se você está em pé em um ônibus lotado ou sentado sob uma árvore; se dispõe de silêncio e sossego ou há ruídos a seu redor. Você aproveita cada momento para ler o texto que expande e liberta a sua consciência. Ler é um ato de desapego em relação ao mundo externo. É um ato de liberdade pessoal – e de compromisso com a verdade.
NOTAS:
[1] “Borges, Oral”, Jorge Luis Borges, Emecé Editores, Buenos Aires, 1979, 105 pp. Veja, respectivamente, as pp. 13 e 16.
[2] “A Importância de Viver”, de Lin Yutang, Editora Globo, 1963, tradução de Mário Quintana, 360 pp., ver pp. 302 a 305.
[3] “Fundamentos da Filosofia Esotérica”, Helena P. Blavatsky, Editora Teosófica, Brasília, 90 pp., ver pp. 83-85.
[4] “Poesia Completa”, Cecília Meireles, Ed. Nova Fronteira, RJ, dois volumes. Veja a obra “Cânticos”, de 1927, no volume I, pp. 121-122, poema II.
[5] “365 Zen Daily Readings”, de Jean Smith, HarperSanFrancisco, Califórnia, EUA, p. 145.
[6] “Borges, Oral”, obra citada, pp. 22 e 23.
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Para conhecer um diálogo documentado com a sabedoria de grandes pensadores dos últimos 2500 anos, leia o livro “Conversas na Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.
Com 28 capítulos e 170 páginas, a obra foi publicada em 2007 pela editora da Universidade de Blumenau, Edifurb.
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