Pomba Mundo
 
Um Conto em Forma de
Poema, Sobre a Religião da Natureza
 
 
Guerra Junqueiro
 
 
o-melro
 
O melro europeu (foto) tem uma semelhança com
a graúna brasileira  e os cantos das duas aves são parecidos
 
 
 
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Nascido em um 15 de setembro,
Guerra Junqueiro (1850-1923) é
um dos poetas filosóficos de Portugal.
 
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O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, de entre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal. [1]
E assim que o padre-cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro de entre a horta,
Dizia-lhe: “Bons dias!”
E o velho padre-cura
Não gostava daquelas cortesias.
 
O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a pé,
Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
Até que ultimamente
O velho disse um dia:
 
“Nada, já não tem jeito! este ladrão
Dá cabo dos trigais!
Qual seria a razão
Porque Deus fez os melros e os pardais?!”
 
E o melro entretanto,
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno inseto.
E apesar disto o rude proletário,
O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.
 
Que grande tolo o padre confessor!
 
Foi para a eira o trigo;
E armando uns espantalhos,
Disse o abade consigo:
“Acabaram-se as penas e os trabalhos.”
Mas logo de manhã, maldito espanto!
O abade, ainda na cama,
Ouviu do melro o costumado canto;
Ficou ardendo em chama;
Pega na caçadeira,
Levanta-se de um salto,
E vê o melro a assobiar na eira
Em cima do seu velho chapéu alto!
 
Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre-cura andava enfermo,
Não falava nem ria,
Minado por tão íntimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura,
(Muito embora o leitor não me acredite)
Que o bom do padre-cura
Perdera… o apetite!
 
Andando no quintal um certo dia
Lendo em voz alta o Velho Testamento,
Enxergou por acaso (que alegria!
Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros escondido
Entre uma carvalheira.
 
E ao vê-los exclamou enfurecido:
 
“A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era a minha sementeira:
Era o pão, e era o milho;
Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!”
 
E engaiolando os pobres passaritos
Soltava exclamações:
“É uma praga. Malditos!
Dão me cabo de tudo esses ladrões!
Raios os partam! andai lá que enfim…”
 
E deixando a gaiola pendurada
Continuou a ler o seu latim
Fungando uma pitada.
 
Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
Uma bela tristeza
Harmônica, viril, indefinida.
A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um misticismo heroico e salutar.
As árvores, de luz ainda douradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
Os rebanhos e as flores,
As aves e as crianças.
 
Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura
Destacava na frouxa claridade,
Como uma nódoa escura.
E introduzindo a chave no portal
Murmurou entre dentes:
 
“Tal e qual… tal e qual!…
Guisados com arroz são excelentes.”
 
Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, aveludado,
Do sorriso dos mártires, dos justos.
Um eflúvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da matéria
Murmuravam diálogos gigantes
Pela amplidão etérea.
São precisos silêncios virginais,
Disposições simpáticas, nervosas,
Para ouvir estas falas silenciosas
Dos mudos vegetais.
As orvalhadas, frescas espessuras
Pressentiam-se quase a germinar.
Desmaiavam-se as cândidas verduras
Nos Magnetismos brancos do luar.
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E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltrozito acetinado e brando.
Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma flecha; e, louco e mudo,
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.
 
“Quem vos meteu aqui?!” O mais velho,
Todo tremente, murmurou então:
 
“Foi aquele homem negro. – Quando veio
Chamei, chamei… Andavas tu na horta…
Ai que susto, que susto! Ele é tão feio!…
Tive-lhe tanto medo!… Abre esta porta,
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
Num bonito lugar…
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas
Para voar, voar!”
 
E o melro alucinado
Clamou:
 
“Senhor! Senhor!
É porventura crime ou é pecado
Que eu tenha muito amor
A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos,
Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,
Quanta noite perdida
Nem eu sei…
E tudo, tudo em vão!
Filhos da minha vida
Filhos do coração!!…
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o céu para voardes,
E prendem-vos assim desta maneira!…
Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa…
Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu! quase à noitinha
Parti, deixei-os sós…
A culpa tive-a eu, a culpa é minha,
De mais ninguém!… Que atroz!
E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar…
Remorso eterno! eterno pesadelo!…
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Falta-me a luz e o ar!… Oh, quem me dera
Ser abutre ou fera
Para partir o cárcere maldito!…
E como a noite é límpida e formosa!
Nem um ai, nem um grito…
Que noite triste! oh, noite silenciosa!…”
 
E a natureza fresca, onipotente,
Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como espadas,
Cantavam rouxinóis.
 
Os vegetais felizes
Mergulhavam as sôfregas raízes
A procurar na terra as seivas boas,
Com a avidez e as raivas tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando à noite os peitos das leoas.
A lua triste, a lua melancólica,
Desdêmona marmórea,
Rolava pelo azul da imensidade,
Imersa numa luz serena e fria,
Branca como a harmonia,
Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons e as flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
O melro solitário
Jazia inerte, exânime, sereno,
Bem como outrora a mãe do Nazareno
Na noite do calvário!…
 
Segundo o seu costume habitual,
Logo de madrugada
O padre-cura foi para o quintal,
Levando a bíblia e sobraçando a enxada.
Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavelmente
Tratava da hortaliça
E rezava a Deus Padre Onipotente
Vários trechos latinos,
Salvando desta forma, juntamente,
As ervilhas, as almas e os pepinos.
 
E já de longe ia bradando:
 
“- Olé!
Dormiram bem?… Estimo…
Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, seus almas do diabo,
Julgam que isto que era só dar cabo
Da horta e do pomar,
E o bico alegre e estômago contente,
E o camelo do cura que se aguente,
Que engrole o seu latim e vá bugiar!…
Grandes larápios!… Era o que faltava!
Vocês irem ao milho,
E a mim mandar-me à fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas,
Têm bico, é certo, mas não têm tonsura…
E nas manhas um melro nunca chega
Às manhas naturais de um padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
É para hoje, olé!… Que bambochata!
Que petisqueira! Melros com chouriço!…
E então a Fortunata
Que tem um dedo e um jeito para isso!…
Hei de comer-vos todos um a um,
Lambendo os beiços, com tal gana enfim,
Que comendo-vos todos, mesmo assim
Eu fico ainda quase em jejum!
E depois de vos ter dentro da pança,
Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote dança,
Como ele é melro e sabe assobiar!…”
 
Mas nisto o padre-cura titubeante,
Quase desfalecendo,
Atônito de horror, parou diante
Deste drama estupendo:
 
O melro, ao ver aproximar o abade,
Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
Do cárcere. Torcia,
Para os partir os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
Com a fúria de um leão.
Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas
E alucinado, exangue,
Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em sangue,
Partiu num voo arrebatado e louco,
Trazendo dentro em pouco
Preso no bico um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno
Disse:
“Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei.
Prende-se a asa, mas a alma voa…
Ó filhos, voemos pelo azul!.. Comei!” –
 
E mais sublime do que Cristo quando
Morreu na cruz, maior do que Catão,
Matou os quatro filhos, trespassando
Quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lágrima, de dor,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cair, já morto, de repente
Num carcavão com silveiras em flor.
 
E o velho abade, lívido de espanto,
Exclamou afinal:
“Tudo o que existe é imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto,
E em todo o coração há um grito igual.
Deus semeou de almas o universo todo.
Tudo que o vive ri e canta e chora…
Tudo foi feito com o mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da existência,
Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura,
Desde a mais bela até à mais impura,
Ou numa pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!…
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Ah, Deus é bem maior do que eu julgava!…”
 
 
E quedou silencioso. O velho mundo,
Das suas crenças antigas, num momento,
Viu-o sumir exausto, moribundo
Nos abismos sem fundo
Do temeroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou… A Igreja, a Crença,
Rude montanha pavorosa, escura,
Que enchia o globo com a sombra imensa
Dos seus setenta séculos de altura;
O Himalaia de dogmas triunfantes,
Mais eternos que o bronze e que o granito,
Onde aos profetas Deus falava antes
Entre raios e nuvens trovejantes,
Lá dos confins sidéreos do infinito;
Esse colosso enorme, em dois instantes
Viu-o tremer, fender-se e desabar
Numa ruína espantosa,
Só de tocar-lhe a asa vaporosa
De uma avezinha trêmula, a expirar!…
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E, arremessando a bíblia, o velho abade
Murmurou:
“Há mais fé e há mais verdade
Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos de um rochedo nu
Que nessa bíblia antiga… Ó Natureza,
A única bíblia verdadeira és tu!…”
 
 
Nota de Guerra Junqueiro: 
 
O fato em que se baseia este poemeto, com quanto pouco conhecido, é absolutamente verdadeiro.
 
Os melros e algumas outras aves, como os pintassilgos e os rouxinóis, quando lhes encarceram os filhos, envenenam-nos. Muitas vezes, (sarcasmo trágico, crueldade sublime!) deixando-os vivos, arrancam-lhes a língua!
 
Ora nem todos os melros, pintassilgos e rouxinóis assassinam os filhos, quando lhos prendem. Só o fazem os mais extraordinários, os mais heroicos. O que nos demonstra que a ação é livre e responsável, e não um simples produto de uma fatalidade orgânica.
 
É pena que Michelet [2] ignorasse este fato. Que páginas divinas que ele não teria escrito! L’Oiseau ficou incompleto.
 
NOTAS:
 
[1] Ouça aqui o canto do melro: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9f/Turdus_merula.ogg. (Joana Maria Pinho)
 
[2] Jules Michelet (1798-1874), filósofo e historiador francês a quem é atribuído um “panteísmo democrático”. Junqueiro faz referência à sua obra “L’Oiseau” (1856). (Joana Maria Pinho)
 
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O poema “O Melro” é reproduzido da obra “A Velhice do Padre Eterno”, de Guerra Junqueiro, Typ. Universal de Nogueira & Caceres, Porto, Portugal, 1885, 211 pp., pp. 125-143. A ortografia foi atualizada.
 
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