Pomba Mundo
 
Renovar a Vida é Uma Função da Alma Imortal
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
A Força da Criatividade
 
 
 
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A frustração ronda os povos e indivíduos que
não ousam renovar suas vidas. A necessidade histórica
dos povos de língua portuguesa no século 21 é confiar na sua
própria vocação natural para a criatividade solidária. Isso, é claro,  
só pode ocorrer através da ética e da ajuda mútua. A ação inovadora
é permanente e natural nos indivíduos interiormente livres, que
estão em contato com suas próprias consciências.
 
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Vamos fazer das tripas coração. Quem não tem cão caça com gato.  O que não tem remédio, remediado está. Mas sempre é possível fazer do limão uma limonada.
 
Esses ditados e expressões populares indicam que a criatividade é uma arma eficaz para enfrentar os desafios da vida, e que ela nos liberta da rotina e da acomodação.
 
A criatividade nunca faltou aos seres humanos, e constitui uma das características centrais dos novos tempos. A atividade de criar significa, etimologicamente, produzir alguma coisa ali onde antes não havia nada. Criatividade é a capacidade de lidar com o desconhecido, e de produzir resultados úteis a partir desta convivência com o imponderável.
 
Quando usamos nossa capacidade de criar, combinamos partes do mundo visível com a vida que flui acima da mente consciente, de modo que nasça algo novo. Isto pode ser feito a cada minuto. No ônibus, em casa, no trabalho, lendo um livro ou falando por telefone, sempre há uma ou mais maneiras de viver com o desconhecido.
 
Em cada ser humano existe um centro de percepção intuitiva que pode compreender a verdade das coisas diretamente e sem o uso de palavras. Mas é necessário ter paz interna e silêncio mental para entrar em contato com esta fonte de criatividade. Sentimentos como o medo, a raiva ou o apego àquilo que pensamos que sabemos nos separam do aspecto ilimitado da vida e reduzem nossa capacidade de criar. Não basta a coragem de conviver conscientemente com o desconhecido. É preciso ser, de certa maneira, imprevisível no modo como trabalhamos, e superar velhas rotinas para fazer o melhor uso de cada momento em função da meta escolhida. O eu superior, quando tem sua luz despertada,  vê através da teia de condicionamentos de curto prazo. Ele percebe a possibilidade positiva de cada situação e usa a vontade interior para colocar em movimento a potencialidade adequada.
 
Criatividade não implica inconstância. Firme no essencial, o ser humano que cria sabe atuar com flexibilidade externa e é conduzido pela intuição superior, que não teme a derrota. A criatividade nos permite esquecer a nós mesmos e reinventar a vida. Ela nos dá ânimo para questionar nossas premissas e reexaminá-las sempre  como se olhássemos para elas pela primeira vez. Isto as torna mais sólidas, porque só as boas premissas resistem a um exame constante. Desse modo,  nossa força na busca da meta será maior, já que se dará sobre um chão firme.
 
Criar não é coisa exclusiva dos humanos. As abelhas, as formigas e os pássaros – como o joão-de-barro, que constrói sua casa – têm suas próprias formas de criatividade. Todas as formas de vida navegam em um processo de eterna autorrenovação. Como qualquer outro animal, um macaco também tem aquilo que o pensador Viktor Frankl  chama de necessidade de autotranscendência. A Enciclopédia Britânica fala de experiências psicológicas feitas no século vinte que demonstraram como o que é novo tem um enorme poder de levar um animal à ação e ao aprendizado. Macacos que viviam em cativeiro aceitavam tarefas difíceis e complicadas em troca de poder sentar junto a uma janela e ver o que estava acontecendo lá fora.[1] A busca de novidades  expressa o princípio básico da busca da transcendência, que é o motor mais poderoso da criatividade. Mesmo assim, buscar novidades é uma atividade quase sempre frustrante. Quando nossa criatividade está adormecida, queremos ver novidades. Quando somos criativos, criamos ativamente coisas novas.
 
Nos dois casos, como em quase tudo na vida,  somos guiados pelo impulso da transcendência, que nos faz querer ir – de um modo ou de outro – até além do que é velho e conhecido.
 
A violência e a destruição são modos errados de buscar a transcendência. A boa criatividade, como a boa transcendência, exige a elevação do olhar em direção ao nosso potencial ainda em grande parte desconhecido, mas eterno e ilimitado, de participação na vida como uma criação permanente.
 
Quem tem sua criatividade natural  reprimida sofre uma opressão subconsciente que o faz cair em uma atitude destrutiva, ou o leva a buscar novidades como uma forma de fuga. A sociedade consumista explora isto, oferecendo falsas inovações para um cidadão inerte cuja necessidade básica de viver criativamente lhe foi roubada.
 
A civilização solidária do terceiro milênio deve nascer libertando a criatividade e fazendo surgir uma sociedade multidimensional, em que o cidadão assume cada dia mais a responsabilidade por sua própria vida, e cria e dá significado a cada momento dela, nos vários níveis de consciência: o físico, o emocional, o mental e o espiritual  –  aquele nível em que flui a substância da sabedoria de todos os tempos.
 
Viver criativamente supõe um equilíbrio dinâmico entre novo e velho. Não basta conviver  com o desconhecido: também necessitamos ter coisas e pessoas estáveis ao nosso redor. Gostamos de morar na mesma rua da mesma cidade, na mesma casa, de usar roupas gastas e de  conviver com as mesmas pessoas. Nossos hábitos formam um ritmo de vida, um padrão vibratório. Precisamos de uma certa estabilidade, e isso é saudável. Se mergulhássemos direta e definitivamente no desconhecido, perderíamos contato com o  mundo externo de três dimensões. Viver é combinar de modo consciente dois mundos, o visível e o invisível, o cotidiano e o eterno, o que controlamos, e o que está fora do nosso controle. Aí está a sabedoria.
 
Há uma relação, também, entre criatividade e solidão.
 
Ninguém pode ser criativo se pensar que é parte de um rebanho ou que precisa agir sempre como os outros. Ser capaz de ficar sozinho é uma das condições prévias da criatividade. Esta solidão traz consigo uma espécie de vazio interior, feito de silêncio. Desse vazio nascem a plenitude interior e a criatividade externa. Uma mente cheia de ideias de segunda-mão não pode criar, assim como não é possível colocar chá novo em uma xícara que já está cheia até a borda.
 
Ser criativo é ser como uma criança – que vive as coisas de modo intenso, direto, total -, e ter ao mesmo tempo a firmeza de alguém mais velho que mantém o rumo da sua navegação pela vida.  Quem usa sua criatividade leva em conta o que está acima do seu centro de consciência verbal porque consegue observar e testar as suas intuições e as ideias que aparecem de modo aparentemente súbito em sua tela mental.
 
O homem criativo é ao mesmo tempo mais primitivo e civilizado do que os outros. Ele não tem medo do caos,  porque sabe trabalhar para transmutá-lo em uma nova ordem, mais complexa e produtiva.
 
Mais do que ficar presos a eventos de curto prazo, devemos discutir projetos coerentes que deem forma a um  futuro saudável.  A atividade criativa é um dos motores mais poderosos da história humana, tanto individual como coletivamente. Cada vez que ela é asfixiada, a sociedade degenera e cai. Uma das tarefas da filosofia esotérica autêntica é dar elementos para que um número crescente de indivíduos pioneiros viva de acordo com a criatividade ilimitada das suas próprias almas imortais, e assim se renove o processo civilizatório.  
 
Não há nada, em nossa humanidade, que não faça parte do plano de evolução do planeta, e nele se desenrola a cria-atividade eterna da vida universal.  Quando percebemos nossa sintonia com a vida do cosmo, constatamos que a existência individual faz parte da dança dos planetas e podemos ver com novos olhos o grau de criatividade que colocamos em cada momento da vida.
 
A meditação dos iogues consiste em elevar a consciência ao estado da criatividade pura. O sábio que mora em lugar retirado pode ser como o poeta que vive diretamente a poesia pura e por isso transcende o fato específico de criar um poema.
 
Há um nível de consciência no ser humano que é criatividade em si mesma e independe do ato limitado de produzir isso ou aquilo.  Mas viver criativamente também inclui a tarefa de construir de modo inovador coisas palpáveis. Isso frequentemente se dá através de um processo que tem quatro etapas.   Vejamos quais são.
 
1) Se você quer criar algo – seja uma obra de arte ou uma estratégia de vida – o primeiro passo é acumular dados e informações úteis e fazer os preparativos necessários para cumprir a tarefa. Você estuda, pensa e imagina. Depois de certo tempo começará a ficar frustrado com estes esforços preparatórios, sem chegar ao ponto de produzir. É necessário ir até o final da etapa de acúmulo, teste e verificação das informações.   
 
2) Surge então o segundo momento, o período da incubação, quando o indivíduo pode até pensar em outra coisa,  enquanto deixa o seu subconsciente ou supraconsciente processar a questão e espera o momento certo de começar a expressar no mundo concreto a criatividade  interior.  Um exemplo clássico desta fase ocorre quando vamos dormir, à noite, pedindo ao nosso eu superior que nos dê pela manhã novas ideias sobre algum problema que nos preocupa. Nesta etapa se abre espaço para o imponderável e a intuição.
 
3) O terceiro momento do ciclo é a produção propriamente dita. De repente há um estalo, um vislumbre, um clarão perceptivo – e você parte para o trabalho avançando aos borbotões, sem preocupação com detalhes.
 
4) Na última etapa do ciclo criativo voltamos outra vez à nossa mente concreta. Corrigimos os erros e imprecisões, tornamos todas as partes coerentes e fazemos o acabamento final do trabalho.
 
Ao longo das quatro fases, há um uso alternado de diferentes níveis de consciência. Na primeira, a mente concreta reúne elementos de informação. Na segunda, a mente transcendente elabora o problema de modo imponderável e não-verbal, enquanto a mente concreta se liberta de todo conteúdo e aguarda o nascimento natural do que é novo. Na terceira etapa, a mente transcendente derrama o conteúdo novo sobre a mente concreta, que opera como se recebesse um orvalho do céu. A mente concreta registra ou materializa este processo de “inundação do alto”. Na quarta etapa, a mente concreta retoma o controle das operações, empregando no mundo concreto a inspiração obtida ao longo do ciclo criativo.
 
As quatro fases são, até certo ponto, simultâneas. Elas são funções naturais da consciência humana no ciclo de vida de 24 horas, que inclui o sono sem sonhos, o sono com sonhos, a passagem para a vigília, o sonho acordado e a ação concreta.  
 
No processo criativo, um momento crucial é o do esvaziamento da mente concreta. A escritora norte-americana Colleen Mariah Rae afirmou que, quando o problema da tarefa por fazer está claramente colocado diante de nós em todas as suas alternativas, é hora de não fazer nada e “deixar que a consciência involuntária faça o trabalho”. É o momento de nadar, passear ou consertar algo em casa. “O que você está procurando são atividades que o mergulham em uma experiência sem pensamento. Qualquer coisa que o afaste do ciclo incessante da conversa mental abrirá o processo subconsciente. Veja o que funciona bem para você  e inclua a atividade em sua agenda diária, porque cada dia traz consigo um novo ciclo de criatividade.”[2]
 
Esta última ideia merece ser examinada. Um dia pode ser vivido como se fosse uma obra de arte. Basta abrir espaços invisíveis em que se eleve silenciosamente a consciência entre uma e outra obrigação costumeira. Podemos desenvolver nesses momentos a plena atenção em relação ao imponderável e à criatividade.
 
“É preciso calar a mente concreta pelo tempo suficiente para que o inconsciente possa falar”, diz Colleen Mariah em seu texto, significativamente intitulado “O Poder Criativo de Não Fazer Nada”.
 
Uma conclusão inevitável disso é que, se nossas vidas às vezes parecem rotineiras, o erro não está tanto no que fazemos, mas sim em como o fazemos.
 
Qualquer tarefa simples pode ser feita criativamente, isto é, com a força da transcendência que temos dentro de nós. Então cada minuto conta e é reconhecido como um momento único e decisivo.
 
Quase todos gostariam de voar diretamente para um estado de criatividade total. Um problema é que, ao mesmo tempo, muita gente não quer renunciar a seus apegos, preguiças e rotinas. Este aparente conflito entre o mundo visível e a busca da transcendência provoca frustração.  Cabe então perguntar: a frustração é ruim?  A resposta de Roger Evans e Peter Russell é negativa. “A frustração é um fenômeno dos menos compreendidos”, dizem eles em seu livro “O Empresário Criativo” [3]: “Raramente ela é permitida ou encorajada em nossa educação.” Nas empresas, quando alguém demora com uma tarefa, surgem as perguntas: “Ainda não terminou? Por que está tão difícil? Talvez fosse melhor indicar outra pessoa para esta tarefa…”
 
Para ser criativo, é necessário conviver bem com a ideia do fracasso. Algumas organizações do século 21 já abrem espaço para a criatividade em todo o seu ciclo, incluindo os momentos frustrantes em que a inspiração parece estar ausente. É indispensável reconhecer que os erros fazem parte do processo criativo. Este fato é ilustrado por uma história atribuída a Thomas Edison, o inventor norte-americano. Dizem que Edison fez milhares de tentativas “fracassadas”, antes de conseguir uma descoberta importante. Certo dia perguntaram-lhe como conseguiu suportar tantas derrotas e seguir tentando. Edison respondeu:
 
“Não fracassei nem uma só vez. Apenas aprendi milhares de maneiras diferentes de não fazer o que queria.”
 
O sentimento de frustração é subjetivo e não objetivo. Pertence ao eu inferior. Quando estamos diante do desconhecido,  ressurge a criatividade dos níveis superiores da nossa consciência.  Então não é possível fazer exigências prévias a serem atendidas pela vida e pelos fatos futuros. Tais “exigências” pertencem ao território do passado. Criar é perceber algo bom que já existe como potencial para o futuro, e fazer com que isso comece a surgir no momento presente.
 
O ponto de vista que leva à verdadeira criatividade é o ponto de vista da alma imortal, que vive no tempo eterno, não-linear.   
 
Em um ambiente coletivo qualquer – seja o de uma família, de uma associação teosófica, de um país inteiro ou de uma  associação de moradores –  vale a pena aplicar sete princípios básicos que abrem espaço para a criatividade e diminuem as fontes de conflito e frustração. Eles são relativamente simples:
 
1) Tome providências para que se estabeleça um ambiente  no qual as pessoas tenham a permissão de criar,  sem “obrigação de vencer” ou “medo de fracassar”.
 
2) Lembre que toda aparente derrota faz parte de um processo de criação mais amplo do que ela. O importante é ter claro o modelo arquetípico do ótimo, da meta a buscar, e então tentar repetidamente, anotando o que se aprende e identificando erros para não repeti-los.
 
3) Abra espaço para questões pouco convencionais. Permita questionamentos de coisas que se considera asseguradas. O reexame inteligente das “certezas” deve ser permitido para que haja criatividade.
 
4) Produza um ambiente não-competitivo, onde a ajuda mútua seja natural e no qual todos compreendem que só têm a ganhar com ela.
 
5) Clarifique e afirme os valores fundamentais e os objetivos mais amplos, porque eles dão sentido à atividade comum.  Estabeleça um claro acordo e uma decisão coletiva em torno dos objetivos compartilhados. O fato de que estes pontos básicos podem ser livremente examinados apenas aumenta a firmeza da adesão a eles.
 
6) Não tenha medo de errar. Não tenha medo de começar. Não tenha medo. O temor é resultado, quase sempre, e um excesso de pensamento em si mesmo. Esqueça de si mesmo. Pense na tarefa.
 
7) Lembre-se destes versos do “Dhammapada” budista:   “Tudo o que somos é resultado do que nós pensamos no passado. Tudo o que somos se baseia em nossos pensamentos e é formado por nossos pensamentos. Se alguém fala ou age com pensamento puro, a felicidade o acompanha assim como sua própria sombra, que nunca se  afasta  dele.”[4]
 
NOTAS:
 
[1] “Encyclopaedia Britannica”, William Benton, Publisher, Chicago, EUA, verbete “Creativity”, vol. 6.
 
[2] No artigo “The Creative Power of Doing Nothing”, de Colleen Mariah Rae, publicado na revista “The Writer”, Boston, EUA, julho de 1997, p. 13.
 
[3] “O Empresário Criativo”, Roger Evans e Peter Russell, Editora Cultrix, SP, 176 pp.
 
[4]  “O Dhammapada”, edição disponível em nossos websites associados, capítulo 1, parágrafo 2.
 
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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
 
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Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
 
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