Respeitando a Vida dos Nossos Irmãos Menores
Carlos Cardoso Aveline
Os animais mamíferos mais evoluídos
são irmãos de sangue da nossa humanidade
Será justo da nossa parte dar morte violenta a animais pacíficos e depois comer seus cadáveres? Pode haver, nesse costume, uma forma de crueldade socialmente aceita e estabelecida? É possível que esta violência com seres mais fracos, a quem chamamos de “inferiores”, dificulte o desenvolvimento da humanidade, causando, inconscientemente, violência entre os próprios seres humanos?
Estas não são perguntas fáceis de responder, e não devem ser colocadas no plano meramente emocional. Nenhum radicalismo primário contribuirá para a compreensão do tema. O sacrifício dos animais, porém, é uma das características de uma civilização humana em crise permanente – ao lado das guerras e de outras formas de violência.
Durante o processo de regeneração e recuperação do nosso esquema civilizatório, será natural e sadio discutir o uso da carne em função de diferentes prioridades, como o respeito às diferentes formas de vida, a garantia de uma boa alimentação, o autoaperfeiçoamento e harmonização interior do homem, além dos processos econômicos e energéticos envolvidos. Para a economia convencional, por exemplo, a morte violenta de milhões de animais é apenas “produção de carne”. Mas talvez seja inevitável, no futuro, encarar o problema do ponto de vista ético. Temos, afinal, o direito de matar?
Vejamos, para começar, a opinião de Mohandas Gandhi: “Deveríamos ser capazes de recusar-nos a viver se o preço da vida é a tortura de seres sensíveis”, disse o líder da libertação da Índia. E sua opinião não era isolada. Os animais são os irmãos menores da atual humanidade.
Um dos maiores gênios da história, Leonardo da Vinci, afirmou: “Tempo virá em que os homens verão o assassinato de animais como eles veem hoje o assassinato de homens”. [1]
Se o pensamento consiste da associação sequencial de diferentes imagens mentais, alguns animais chegam próximo a ele. Há exemplos conhecidos. Mas é seu plano emocional que está amplamente desenvolvido, permitindo grande afinidade com o ser humano. Isto não é verdade apenas para os animais que são normalmente preferidos pelo homem. Em certas regiões dos Estados Unidos, por exemplo, já é comum criar um porco com o mesmo carinho e intimidade que se dá aos cães e gatos. Percebi este fato anos atrás, quando descansava deitado no gramado da Universidade de Berkeley, Califórnia. Estava lendo alguma coisa sobre ecologia aquática quando fui surpreendido por uma voz feminina, docemente autoritária, como se fizesse uma crítica a alguém muito amado:
“Daisy! Daisy! Daisy! Vem cá!”
Levantei os olhos: uma jovem caminhava apressada, com uma cordinha na mão. Atrás dela, atrasada, mas recuperando o tempo perdido, corria uma grande porca de mais de cem quilos, limpa, de cor rosada, livre e feliz ao chamado da dona.
Era Daisy, evidentemente. E se notava uma profunda confiança mútua entre ela e sua proprietária, enquanto as duas atravessavam, num passo apertado, o belo campus de Berkeley.
“Daisy não sabe, mas tem muita sorte”, pensei. Mesmo com uma inteligência e sensibilidade comparáveis às do gato, cachorro ou cavalo, em geral, os porcos levam uma vida difícil. A maior parte deles é criada em total confinamento, em meio ao lixo, sem higiene. Quase não podem mover-se, são engordados artificialmente, e sofrem de desnutrição. Criados de modo antinatural, eles recebem antibióticos e hormônios até o dia do sacrifício. Mas sua morte violenta prejudica também o homem, do modo mais imediato: sua carne é talvez a menos saudável e a que mais ameaça a saúde do consumidor.
Daisy e a carne de porco são apenas um exemplo, porque a situação é basicamente a mesma com a carne de boi, de aves e de peixes. As galinhas “poedeiras” ficam em gaiolas onde não podem mover o corpo em nenhuma direção, sob fortes lâmpadas elétricas ligadas noite e dia. Nunca dormem, nunca relaxam, e a ansiedade lhes dá uma fome descontrolada. Comem uma ração química que multiplica os ovos, mas os torna prejudiciais à saúde humana, com seus hormônios e antibióticos. Os frangos criados para serem mortos têm sorte semelhante.
O peixe, por sua vez, é um animal mais primitivo que os mamíferos, e seu sofrimento, aparentemente, poderia ser menor. Mas – como poderíamos medir a dor alheia? Além disso, o peixe é o animal que sofre a agonia mais lenta. Pode demorar até várias horas para morrer depois de retirado da água. Há rios em que os pescadores costumam deixar peixes amontoados em um “viveiro”, ou uma cesta de vime submersa, onde sua agonia é prolongada para que a carne não se deteriore antes da chegada a um frigorífico ou freezer.
Nos últimos anos, por vários motivos, o consumo de carne vem sendo cada vez mais discutido no mundo todo. Mas o debate é antigo.
“A própria fisiologia humana não condiz com a alimentação carnívora”, garantia, já em 1903, o Dr. G.S. Huntington, da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. E comprovava, pela análise dos dentes humanos, que sempre fomos animais herbívoros, com dentes caninos pequenos e predominância dos molares. Ao mesmo tempo, nossos intestinos são cheios de divisões, de modo semelhante ao do boi e outros herbívoros, mas bem ao contrário dos carnívoros tradicionais.
Ao longo dos últimos cem anos tem sido cada vez maior o número de médicos e cientistas que questionam o uso da carne na dieta humana, responsabilizando-a por vidas mais curtas, doenças do coração, câncer no intestino e outras partes do organismo. Hoje já caiu o dogma, antes intocável, da necessidade de proteínas animais a partir da carne. O consumo de leite, queijo, manteiga e ovos parece firmemente estabelecido. A carne deixa de ser um item considerado indispensável para assumir, gradualmente, o papel de vilão do cardápio. [2]
Por que razão se diz que a carne tem efeitos daninhos? Entre os muitos fatores, há alguns agravantes recentes. Antes o homem convivia com os animais de modo mais sadio. Dava-lhes relativa liberdade. Com o desenvolvimento tecnológico, os animais não podem ter mais nada parecido com uma vida normal: são mantidos em jaulas, sem liberdade de movimentos. Ficam doentios, e para prevenir doenças, recebem antibióticos em sua ração, assim como hormônios e anabolizantes cancerígenos, que provocam crescimento e engorda artificiais. [3]
À medida que estes e outros fatos ficam cada dia mais conhecidos, até mesmo a ciência convencional desmistifica o uso da carne. Já em dezembro de 1990, o “New England Journal of Medicine” revelava o resultado de uma pesquisa de seis anos com 88.750 mulheres norte-americanas. [4] A conclusão era que o consumo de carne bovina ou suína aumenta radicalmente o risco de câncer no intestino, e mesmo o consumo ocasional de carne vermelha eleva as chances de contrair a doença. Tal advertência vem sendo feita insistentemente por cientistas de vários países e, como consequência, uma parcela crescente da população altera seus hábitos.
Do ponto de vista econômico, já se questiona o fato de que o Brasil exporta grandes quantidades de soja barata para alimentar o gado em outros países, enquanto nem todas as crianças brasileiras têm alimentação adequada.
Energeticamente, a criação de gado bovino é um desperdício. Para alimentar o gado de corte, são necessárias enormes extensões de terra que poderiam alimentar seres humanos com uma dieta mais leve e mais saudável. E as advertências sobre o perigo da explosão demográfica perderiam sentido, se os rebanhos parassem de multiplicar-se por inseminação artificial, dando mais espaço geográfico para o ser humano.
Tanto o enfoque dietético, como o econômico, o energético e o demográfico nos levam a questionar o consumo da carne do ponto de vista antropocêntrico, isto é, pensando apenas no que é melhor para o homem, como se não tivéssemos dever nenhum para com animais menos evoluídos do que nós. As outras formas de vida, porém, têm um valor intrínseco, independentemente da sua utilidade ou não para o nosso bem-estar particular. Esta é a questão ética. Mark Twain escreveu:
“Se você cuida de um cachorro doente até que recupere a saúde, ele não vai mordê-lo mais tarde. Esta é a principal diferença entre os homens e os animais”.
E Samuel Butler acrescenta:
“O homem é o único animal que pode comportar-se amigavelmente com as vítimas que ele pretende devorar, até o momento em que as devora”.
Há nos olhos dos animais uma imagem pálida e um vislumbre de humanidade, “um raio de luz através do qual a vida deles olha para fora e para cima, em direção ao grande poder do nosso domínio sobre eles, e pede por amizade”, escreveu John Ruskin, um dos inspiradores de Gandhi.
A morte dos animais, mesmo os mais sensíveis e inteligentes, é considerada normal em nossa sociedade. Mas, “se os animais pudessem falar, teríamos coragem de matá-los e comê-los?”, perguntou um dia o escritor francês Voltaire. “Como poderíamos justificar tal fratricídio?”
Herbert Spencer escreveu que “o comportamento do homem para com os animais é inseparável do comportamento dos homens entre si”. A filosofia esotérica afirma que a dor que causamos aos animais retarda a evolução humana. Há quem diga que “o círculo vicioso do longo e contínuo massacre de animais só pode culminar em guerras”. O escritor inglês George Bernard Shaw foi além: “Enquanto o homem assassinar animais e comer sua carne, vamos continuar tendo guerras”, escreveu ele. E o indiano T.L. Vaswani advertia que “nenhum país está verdadeiramente livre enquanto o animal, o irmão mais moço do homem, não estiver livre e feliz”. [5]
Alguns carnívoros consideram que questionar eticamente a morte de animais é um exagero. “Afinal, a maior parte deles já teve seu nascimento provocado, especialmente, para serem sacrificados mais tarde”, alegam. Outras pessoas, porém, discordam. “Você tem a opção de dar ou não vida a outros seres”, explicam. “Nada disso o autoriza a matar, nem a maltratar ninguém”.
De acordo com esse ponto de vista, atrás do ritual inocente de comer uma chuleta ou bife malpassado, existe um verdadeiro holocausto, uma morte violenta em massa, permanente, rotativa, de milhões de bois e vacas indefesos.
E como se dá esse processo rotineiro? Vejamos um exemplo.
Os animais viajam centenas de quilômetros de pé, sem água ou comida, apertados na carreta de um caminhão. Ao chegar, ficam de dois a quatro dias no pátio do abatedouro – recebendo apenas água. Na hora do sacrifício, os animais são forçados a entrar em um longo corredor estreito. São tomados pelo desespero, e tentam fugir de todas as formas. No final do corredor, uma das maneiras mais usadas de matar começa com um golpe de marreta na cabeça. O animal fica tonto, perde as forças e cai com os olhos abertos, mas é suspenso por um guindaste atado às patas traseiras. Às vezes já está se recuperando do golpe e debatendo-se pela liberdade quando é definitivamente degolado. Seus olhos se esvaziam; o olhar ainda está lá, mas a vida atrás dele retira-se.
As facas não param, o boi deixa de existir e em poucos minutos é completamente despedaçado. O couro viaja para o curtume. O sangue vira ração de animais e as fezes, de adubo. Mas haverá muito sangue e fezes poluindo o curso d’água próximo.
A experiência de testemunhar a morte violenta de animais obedientes e humildes é forte. Algumas pessoas jamais provam carne após uma visita a um matadouro. Enquanto assistem à morte dos animais, que caem um após outro, certos indivíduos precisam reprimir um impulso não racional que lhes manda gritar com veemência ao homem da morte, interpondo-se entre ele e o próximo animal a ser morto:
“Pare! Pare de matar agora mesmo!”
Se Bernard Shaw tinha razão, o surgimento de novas teorias alimentares, que nos levam a abandonar o hábito de matar animais para comer carne, é uma das grandes bênçãos que hoje se derramam sobre o difícil caminho da humanidade. Pode ser um dos fatores fundamentais para eliminar a violência de dentro e de fora do indivíduo humano. Estará sendo aplicado, então, um ensinamento de um sábio que foi conhecido no mundo grego antigo como Pitágoras:
“A Terra, generosa, oferece a você uma grande variedade de alimentos puros e de refeições que podem ser alcançados sem massacre nem derramamento de sangue”, disse o filósofo e matemático há 2.600 anos atrás.
NOTAS:
[1] “Birthday Autograph Book”, Animal Welfare Board, Madras, Índia.
[2] “Vida e Saúde”, revista, número especial sobre o vegetarianismo, p. 19 e seguintes. “Tribuna Alemã”, outubro de 1983, nº 343, p. 14.
[3] “SOS Animal”, publicação da Liga de Prevenção à Crueldade Contra o Animal, Belo Horizonte, MG, ano VII, nº 32, junho de 1990.
[4] “Gazeta Mercantil”, 14 de dezembro de 1990.
[5] “Birthday Autograph Book”, obra citada. Este volume é a fonte dos pensamentos de vários pensadores citados nos parágrafos anteriores.
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Uma versão inicial do texto acima foi publicada no livro “Apontando Para o Futuro – responsabilidade ética e preservação ambiental no século 21”, de Aveline. A obra foi publicada em Porto Alegre em 1996, com 106 pp., pelas editoras FEEU e PrajnaParamita, e está esgotada.
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Sobre a ecologia da mente e a teosofia do ambiente natural, veja o livro “A Vida Secreta da Natureza”, de Carlos Cardoso Aveline.
A obra foi publicada pela Editora Bodigaya, de Porto Alegre, tem 157 páginas divididas por 18 capítulos, e está na terceira edição, de 2007.
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