A Força Espiritual de uma Bebida Indígena
Carlos Cardoso Aveline
Consciente ou inconscientemente, desde tempos imemoriais o ato de comer e beber constitui uma forma de comunhão imediata com a natureza.
Vivemos em constante troca e unidade dinâmica com o meio ambiente. O peregrino que busca o autoconhecimento deve examinar de que forma e com que atitude se alimenta. Ele avança para as bebidas e os alimentos como um predador impulsivo, ou como alguém dotado de inteligência?
Cada refeição pode ser uma prática meditativa, e em muitos casos é vivida como uma ponte para o mundo divino.
Tradições místicas do Oriente e do Ocidente recomendam orar e meditar alguns instantes antes de comer, e ensinam a celebrar o alimento como forma de contato com a Vida infinita.
Desde Hipócrates, o alimento deve ser encarado como remédio. Os chás, as frutas e as hortaliças são instrumentos de cura. Deste ponto de vista, alimentar-se é um ato profundo de renovação da vida e não um gesto impensado de exaltação da gula. Cada cidadão terá provavelmente alguma forma de autocrítica a fazer a este respeito. Melhorar é sempre possível, e o chimarrão, uma espécie de chá amargo feito à base de erva-mate, é uma bebida de fortes raízes culturais, associada a lições filosóficas e místicas.
Produto tradicional da região sul do continente sul-americano, o chimarrão é popular em grande parte do Brasil, em todo o Uruguai, Argentina, Paraguai, e pode ser comprado até mesmo em Lisboa, Portugal.
Seu uso é anterior ao período colonial começado em 1500. A nação indígena dos Guarani usava a erva-mate como um fator de celebração da unidade comunitária e de comunhão com os deuses: os Guarani eram panteístas.
Na tradição do sul do Brasil, o chimarrão é tomado em grupo. A cuia (o recipiente) passa de mão em mão, no sentido anti-horário. Cada um recebe a bebida com sua mão esquerda, receptiva, e a entrega com a mão direita, ativa. A bebida deve ser tomada moderadamente, já que é forte, tendo efeito geral semelhante ao do café. A espera da sua vez treina cada um em paciência.
Quando bebido em grupo, cabe a cada um uma dose naturalmente limitada de chimarrão. No uso individual, manter a moderação é uma tarefa mais consciente. Um modo de suavizar a bebida é usar um recipiente pequeno, combinando a erva-mate com quantidade expressiva de chás medicinais.
O chimarrão está diretamente associado à comunhão, e cada consumidor individual pode celebrar silenciosamente a sua comum unidade com todos os seres, enquanto ingere esta bebida pagã que é vista há séculos como ligação com os deuses da natureza.
Uma Lenda Indígena
Em “Os Mistérios Ocultos no Chimarrão”, Wilson Tubino conta uma versão de antiga lenda dos indígenas Tapes.
Uma tribo de fala guarani era chefiada por um cacique sábio, corajoso e prudente, cuja única filha, Yari, encantava a todos.
Já velho e perdendo as forças, o cacique passou o comando ao mais bravo dos guerreiros, que amava sua filha Yari e era amado por ela.
Os dois casaram-se.
Era costume na tribo que as mulheres acompanhassem os maridos na caça, na pesca, e mesmo na luta: mas como evitar que o velho cacique ficasse sem companhia enquanto sua filha viajava com o novo cacique? O ancião pediu aos deuses que lhe dessem um amigo para evitar a solidão e assim liberar a filha.
Um dos deuses apareceu-lhe em sonhos e indicou uma árvore verde e brilhante. Ensinou-lhe a cortar os ramos, secar e triturar as folhas para o preparo da erva. Mostrou-lhe como cortar o porongo, isto é, a cuia, o recipiente natural da erva, e também a bomba, feita de uma espécie de bambu. Assim nasceu o CAÁ-Y, o chimarrão. A partir de então o velho cacique teve sempre a companhia da erva-mate nas ausências da filha. Conta a lenda que décadas depois, quando Yari morreu, passou a ser a força espiritual dos ervais e protetora da erva-mate.[1]
No silêncio das “mateadas”, os índios conversavam com a memória dos seus ancestrais. Começada a era colonial na América do Sul, vieram os jesuítas e proibiram o uso da erva devido ao seu significado cultural não-cristão. Os católicos pretendiam destruir a cultura nativa e impor o modelo monoteísta europeu.
O chimarrão foi condenado ao inferno pelos representantes do Vaticano. Jesuítas criaram várias lendas segundo as quais o chimarrão era uma bebida maldosa. [2] No entanto, as manobras fracassaram. O costume do chimarrão venceu ao longo do tempo e até hoje o seu uso está associado à prática da comunhão com a natureza, como quando é bebido ao ar livre ao amanhecer, e da comunhão com a comunidade, através do seu consumo coletivo.
Derrotadas as tentativas jesuíticas de erradicar o consumo de chimarrão, os teólogos católicos decidiram inventar outras lendas falsas, esta vez atribuindo a origem da erva-mate a Jesus Cristo e ao deus colonialista do Vaticano. Wilson Tubino tem o mérito de mostrar claramente em seu livro a fraude sacerdotal. [3] No entanto, sua obra falha ao não deixar suficientemente estabelecido o fato de que os índios eram panteístas. “Tupã” não corresponde de modo algum ao deus católico. O suposto monoteísmo dos indígenas brasileiros é uma das falsidades intencionais fabricadas pelo clero jesuítico.
A teosofia afirma que cada planta possui um “espírito sutil”. O chimarrão aponta na cultura indígena para o “caminho do coração”. Segundo Tubino, “ele conduz as pessoas à introspecção e as ensina a lidar com as energias, próprias ou não, a conhecer e lidar com seus sentimentos, seus pensamentos, seus medos e suas limitações.”[4]
Numa roda de chimarrão, pratica-se a fraternidade universal. Nela não há diferenças entre patrão e empregado, pobre e rico, homem e mulher, jovens e velhos.
O chimarrão nada tem a ver com uso de drogas e substâncias alucinógenas, todas elas graves obstáculos que destroem o autocontrole, obstaculizam o autoconhecimento e impedem a sabedoria verdadeiramente espiritual.
A erva-mate estimula a lucidez e o bom senso. Fortalece o realismo e afasta aquele que a ingere de delírios e sonhos sem contato com a verdade. O chimarrão expande a capacidade de concentração. Ele fortalece o discernimento e rompe os grilhões do egoísmo e do isolamento. Para quem cultiva a paz interior enquanto ingere sozinho esta bebida, surge, potencialmente, a noção da unidade mais profunda consigo mesmo, com seus ancestrais, e com todos os seres.
O uso de chimarrão é um exemplo vivo, entre outros, da cultura tradicional das Américas.
No Brasil, em Portugal e no mundo todo, a sabedoria popular e a medicina natural estão ligadas ao uso de chás e ervas. A afinidade com seres vegetais, tendo como bases a moderação, o bom senso e a lucidez, ocorre ao lado da amizade do ser humano com o mundo dos animais e o mundo divino.
NOTAS:
[1] “Os Mistérios Ocultos no Chimarrão – Aspectos Místicos da Erva-Mate”, Wilson Tubino, Evangraf-Iso-Tchê, 2a. edição, 2001, 97 pp., ver pp. 29-30.
[2] “Os Mistérios Ocultos no Chimarrão”, Wilson Tubino, 2a. edição, pp. 33-39.
[3] Ver pp. 43-45.
[4] Ver pp. 49-50.
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O texto acima foi publicado pela primeira vez sem indicação de nome de autor, na edição de março de 2016 de “O Teosofista”, pp. 2 a 4.
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Veja também os livros “Guia Prático do Chimarrão”, de Wilson Tubino, Martins Livreiro Editora, 2011, 40 páginas, e “História do Chimarrão”, Barbosa Lessa, 2a. edição, Sulina, 1953, 120 páginas.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
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